As mandalas e a relação com C. G. Jung

Nise era uma admiradora da psicologia junguiana e foi a responsável pela introdução da psicologia analítica no Brasil.

A configuração de mandala harmoniosa, dentro de um molde rigoroso, denotará intensa mobilização de forças autocurativas para compensar a desordem interna

Nise da Silveira, em Museu de Imagens do Inconsciente (1981)

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Seção de vídeo

Arqueologia da psique

Luiz Carlos Mello, diretor do Museu de Imagens do Inconsciente (MII), explica como Nise da Silveira desenvolveu a linha de pesquisa comparada, também chamada de arqueologia da psique, na qual a produção artística de cada cliente pode ser analisada em comparação a diversos momentos da história da arte. Fala ainda sobre o contato dela com o psiquiatra Carl Gustav Jung.

Martha Pires Ferreira, artista visual e ex-monitora do ateliê do museu, trata da teoria junguiana e da importância de estudar a mitologia para melhor compreender os elementos das imagens, como as cores, os traços, os espaços e até as reações corporais durante as pinturas.

Gladys Schincariol, coordenadora do museu, fala sobre como o tratamento deve ser não verbal, para que possa efetivamente trazer conteúdos para a consciência, e sobre a necessidade de arquivar e analisar a série de imagens produzidas por cada indivíduo.

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Em 1954 juntou fotografias de algumas imagens de mandalas e enviou-as junto a uma carta que escreveu para C. G. Jung.

Ele, em sua resposta, confirmou a suspeita de Nise – e abriu com ela um canal de diálogo duradouro, que culminou na ida da médica ao II Congresso Internacional de Psiquiatria, em 1957 em Zurique e na presença do psiquiatra na abertura da exposição que aconteceu paralelamente ao congresso.

Confira abaixo as cartas trocadas entre eles.

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Carta de Nise a C. G. Jung

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Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1954.

Professor C. G. Jung,

Mestre,

No centro psiquiátrico do Rio de Janeiro, há, ao lado de outros setores de atividade do serviço de ocupação terapêutica, um ateliê onde os doentes desenham e pintam na mais completa liberdade. Nenhuma sugestão lhes é dada, nenhum modelo lhes é proposto. E, assim, imagens primordiais emergem nessas pinturas, trazendo uma empírica e convincente demonstração da psicologia analítica.

Com minhas mais respeitosas homenagens, eu lhe envio algumas fotografias de pinturas que me parecem mandalas. Elas foram pintadas por esquizofrênicos, espontaneamente. Qualquer possibilidade de influência cultural está descartada.

Eu não saberei lhe dizer, mestre, quanto o estudo de seus livros trouxe luz ao meu trabalho de psiquiatra e também quanto eles me ajudam pessoalmente.

Queira acreditar em mim, sua mais humilde discípula – Nise da Silveira.

Marquês de Abrantes, 151, ap. 403
Rio de janeiro – Brasil – ou redondezas

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Zurique, 15 de dezembro de 1954.

Senhor Nise da Silveira,
Rua Marquês de Abrantes, 151, ap. 403
Rio de Janeiro – Brasil

Caro senhor,

O professor Jung me pediu para agradecê-la pelo envio das interessantes fotografias das “mandalas” desenhadas por esquizofrênicos.

O senhor professor Jung fez diferentes perguntas que eu lhe repito aqui: O que esses desenhos disseram aos doentes, no que se refere aos seus sentimentos? O que eles queriam expressar por essas mandalas? Será que os desenhos têm alguma influência sobre eles? Além do mais, ele achou que os desenhos têm uma incrível regularidade, o que é raro nos desenhos de esquizofrênicos; isso demostra uma forte tendência do inconsciente em formar uma compensação ao caos do consciente. Ele também destacou que o número 4 (ou 8 ou 32 etc.) é prevalecente.

Suponho que as cores dão ainda uma acentuação muito forte aos desenhos. Se o senhor não precisar deles, eu serei muito grata se pudermos guardar as fotos. Talvez o senhor terá a possibilidade de responder às perguntas do professor Jung, o que será de muito interesse para ele.

Aceite, senhor, a expressão de nossa alta consideração.

Assinatura: A. Jaffé, secretária

Para a compreensão psicológica seria também interessante saber algumas datas biográficas
dos pintores.

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Congresso Internacional de Psiquiatria em Zurique (1957) e a exposição “A Arte e a Esquizofrenia”

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Em 1957, Nise foi convidada por C. G. Jung para estudar no Instituto C. G. Jung, e retorna a Zurique.

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3 de agosto de 1956

Senhores,

O signatário desta carta convida a senhora doutora Nise da Silveira a se juntar ao semestre de
verão de 1957 do Instituto C. G. Jung Zurique.

As aulas, os seminários e o contato com meus colaboradores serão de grande importância para preparar a exposição de arte psicopatológica que deve ser organizada na ocasião do Congresso Internacional de Psiquiatria – Zurique 1957. Ficarei feliz se, pela visita da senhora doutora Nise da Silveira, o contato entre os psiquiatras do Brasil e os da Suíça se aprofundar. Não será sem importância para o futuro tanto da psicologia quanto da psiquiatria.

Assinatura e carimbo: Prof. C. G. Jung

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Entrada da casa de C. G Jung
Entrada da casa de Jung com texto em latim: Invocado ou não, Deus está presente | foto: autor desconhecido/Arquivo Nise da Silveira

Transcrição da chegada de Nise à casa de Jung [13/07]

Chego às 11:15 em ponto. Leio a inscrição no alto da porta da casa “Invocado ou não, Deus está presente” e entro cheia de emoção.

A empregada conduz-me a uma pequena sala de espera onde passo momentos de grande ansiedade. Olho livros, quadros, estatuetas, mas minha percepção está incapaz de reter qualquer coisa. Depois de andar de um lado para outro sento-me ao lado de um pequeno armário com prateleira forrada de figurinhas X e X provável de vidro.

Na prateleira que está pouco abaixo do nível da minha cadeira vejo de repente uma fisionomia conhecida. Ali estavam as figuras em porcelana de dois cães e um deles, com certeza, é a minha amiga Le Monstre. Minha percepção encontra um objeto para fixar-se. É bem o rosto de Le Monstre, com sua expressão de grande bondade, bem tranquila, bem segura dentro de seus instintos. As orelhas são as mesmas pequenas e abertas. Detenho-me observando que a distribuição do branco e do preto, porém, é diferente, a figura sendo quase o negativo do original.

A porta se abre e eis-me na presença prof. Jung. Ele me conduz à sua biblioteca e enquanto o faz diz-me que as fotografias que lhe mandei do Brasil o interessou muito. Na biblioteca (não saberei descrever nada desta ampla sala), sento-me defronte dele, bem perto, junto a uma janela que se abre sobre o lago. Pergunta-me como encontrei seus livros. Respondo-lhe que seus livros são facilmente encontrados nas livrarias do rio e que entre os psiquiatras brasileiros alguns estão interessados pela psicologia junguiana. Ele ficou surpreendido. Digo-lhe que me aprimorei de sua psicologia porque encontrei nela esclarecimento para problemas pessoais e de outra parte porque via na produção X dos meus doentes a confirmação daquilo que lia em seus livros.

Ele retoma minhas palavras sobre a “siprificação” de sua psicologia em relação a meus problemas pessoais.

Digo-lhe que me sinto rasgada em opostos. Ele diz que nas mulheres que estudam Animus toma uma grande força que está em oposição à sua própria natureza feminina. Ele pode ver quanto o meu Animus é violento “como um galo de briga”.

Conto-lhe o sonho onde ele aparece X à pequena mesa coberta por uma toalha cheia de estrelas. Não sei a constelação que formavam. Ele diz: É sempre assim. E interpreta o sonho mostrando a relação das estrelas com o psiquismo. Astrologia, horóscopo. Cada indivíduo é como uma estrela, como uma morada, sem janelas , segundo dizia Leibnitz. Esta é uma boa comparação. Os acontecimentos entre essas moradas operam-se por sincronicidade.

Nosso plano de desenvolvimento está inserido dentro de nós. Se nós desviamos dele – e esses desvios (X) são sempre trabalho do consciente – “sobressaem” a neurose. Reencontra o seu plano pessoal de desenvolvimento é a cura. Quem segue o seu próprio caminho não pode
tornar-se neurótico.

“Helas je me suis éfarree!”

Digo-lhe que sua psicologia é uma concepção do mundo que dá sentido a todas as coisas e “vinificam” coisas pareciam ter sido mortas pelo racionalismo do século XIX.

– Sim, sua psicologia é uma filosofia na acepção antiga dessa palavra. Em árabe (?) a palavra filosofia significa não “taparelice” , precipitação, mentira. Com efeito, muitas escolas filosóficas não são outra coisa. A verdadeira filosofia, no sentido grego, ensina a viver e é também um
aprendizado para a morte. Porque a morte não é o fim. La mort est um beet. O marco de um recomeço. Digo: foi por isso que Sócrates não teve medo de morrer.

Prof. Jung diz: posso fazer-lhe uma pergunta? – De certo, todas as perguntas. Ele me interroga sobre minha família, sobre meu pai. E diz que antes de meu nascimento já estavam pre-formadas minhas possibilidades de compreensão da psicologia. Diz que eu tenho essas possibilidades. Acha muito importante a origem de pessoas. Ele vem de uma família a qual desde x gerações seus membros eram cultos. Esse prepara para a compreensão psicológica. Ele pode ver os arquétipos na sua atividade.

Interroga-me sobre meu trabalho no Rio, sobre minha viagem e sobre minha analise em Zurich. Digo-lhe que estou muito contente da minha analise com a Dra. Von Franz. “Sim. Ela é um espírito muito universal”.

Falo-lhe de novo dos meus opostos: materialismo e catalicismo. Conto o sonho da hostia de nilon. Ele interpreta: o inconsciente quer indicar que na hóstia a presença de Cristo não é um fato físico. É um símbolo e, como símbolo, pode ser feito de trigo, de metal e mesmo de nilon. É preciso transferir a numinosidade para o símbolo. Cristo como símbolo do sol. Deus em nós. Citação das palavras de Cristo: vós sois Deuses. Cristo – Le X (tom de voz_. Digo-lhe que acabo de ler a Resposta a José e que este livro foi também uma resposta para mim. Peço-lhe para autografar o exemplar que trouxe comigo.

Promete-me, espontaneamente, tornar a ver-me antes de minha volta. Descendo a escada diz que eu fiz muito. Bem em viajar por vapor. Que X vem de avião, deixam pedaços do outro lado e chegam aqui só pela metade. Por isso são Letement superficielles.

Diz que esteve só durante 30 anos. Mesmo hoje ainda poucos aceitam verdadeiramente sua psicologia. As mandalas pintadas pelos doentes brasileiros são uma confirmação de muitos interesse. Ainda há quem diga que ele inventa estas coisas.

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Nise da Silveira participando do grupo de estudos C. G. Jung
Grupo de estudos C. G. Jung

O Grupo de Estudos C. G. Jung foi criado formalmente por Nise em 1969 – reunia-se informalmente desde 1954 – inspirado no psiquiatra e em seu trabalho. O registro formal foi uma saída de Nise para evitar a perseguição policial que o grupo sofreu no período de ditadura militar. A proposta inicial era que os encontros debatessem as ideias de Jung, mas com o tempo passaram a produções referentes não só a psicologia, mas a diferentes áreas das artes, convidando pessoas que produziam nesses diferentes formatos. Passaram a produzir a revista “Quaternio” em 1965, que reunia artigos de diferentes participantes dos encontros; a última edição foi publicada em 2001, após a morte de Nise, em sua homenagem.

O Grupo de Estudos ainda acontece na Casa das Palmeiras e no Museu de Imagens do Inconsciente (MII).