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Por uma arquitetura da vida

Em mais uma coluna Brechas Urbanas, Mayra Fonseca fala sobre a reapropriação de espaços públicos

Publicado em 09/11/2017

Atualizado às 14:55 de 21/09/2018

Por Mayra Fonseca

Estou em Recife: abro a persiana do quarto do hotel em Boa Viagem e vejo. Nem preciso abri-la, é verdade. Só de escutar o mar já sinto a abundância de horizontes. A brisa me faz lembrar tambores e remédios, matos e curas, a sensação do pé pisando a areia na caminhada da manhã. Penso na mulher que conheci no entardecer do sábado: 20 anos de vida no barracão do fundo do terreno onde a sua avó vive no profundo da cidade. A paisagem que acesso é tecnologia para desenhar sonhos. E Iasmim, a moça que me abriu as portas de sua casa há poucos dias, em quais cenários ela consegue se projetar?

Imagem da obra Desenho/Canteiro, videocolagem de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca sobre a relação entre texto e imagem na divulgação de projetos imobiliários no Nordeste do Brasil. Fonte: site da artista

"Anterior às manifestações políticas tal como conhecemos hoje, a questão central sobre a reapropriação dos espaços é: como é possível existir e viver na cidade?" Márcio Black, produtor cultural

No encontro de Brechas Urbanas do mês de outubro, o ativista Márcio Black reforçou: os primeiros grupos de pessoas que começaram a lutar pela ocupação e pela reapropriação de espaços públicos estavam, na verdade, tratando da arquitetura da vida em cidades tão segregadas como São Paulo, estavam em busca de criar espaços comuns para lazer, cultura, entretenimento e saúde… e tentando romper o formato da propriedade privada que exclui a maioria da população.

Foi com essa motivação que surgiram alguns dos coletivos nos quais Márcio atua, como é o caso do Sistema Negro, formado por produtores, artistas, empreendedores e educadores negros com foco no combate ao racismo. Com essa vivência em grupos que buscam transbordar as cartografias hierarquizadas dos espaços urbanos, o produtor cultural acredita que a maior cidade do país melhorou muito nos últimos 15 anos, ainda que o recente Mapa da Desigualdade traga um retrato bastante preocupante no que se refere à qualidade de vida e à segurança contrastantes conforme os bairros de São Paulo:  

"O risco de um jovem ser vítima de homicídio no Campo Limpo é 16 vezes maior do que na Vila Mariana." Dado do Mapa da Desigualdade publicado no Nossa São Paulo

O cientista político Vitor Marchetti lembra que coletivos e ativistas foram agentes fundamentais para a mudança recente nas discussões sobre os espaços públicos no Brasil: os grupos civis fizeram com que os debates saíssem do monopólio de partidos e sindicatos.

"Os ativistas vivem entre o Estado e o capital privado, não se dando muito bem em nenhum dos dois universos, e, por isso, tentam fazer da rua um novo espaço político possível." Vitor Marchetti, cientista político

Realização audiovisual durante o Movimento Ocupe Estelita, 2014, por Pedro Severien

Entre os movimentos que protagonizaram uma nova narrativa sobre as cidades no Brasil, o Ocupe Estelita, de Recife, é um importante destaque: uma enorme onda de reação e resistência iniciou-se com a notícia da privatização do Cais Estelita e culminou em uma verdadeira luta pelo direito à cidade, que amplificou as discussões para as redes sociais e, do ambiente digital, para todo o país.

"Espaço público não é só espaço físico." Liana Lins, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Liana Lins, advogada que foi integrante do Movimento Ocupe Estelita, lembra também a importância do tom mais próximo e cotidiano para os chamados às questões comuns na cidade. Para ela, um aprendizado de mobilizações como o Estelita é o perigo das abordagens excessivamente sérias: uma linguagem muito sisuda e técnica pode afastar as pessoas, ao passo que a arte, a irreverência e o escracho abrem brechas para uma nova forma de aproximação.

No final da noite da quinta-feira 26 de outubro, Liana convocou todos a assistir Novo Apocalipse Recife, vídeo produzido de forma colaborativa durante as ocupações do Estelita e com essa linguagem contemporânea que pode provocar emoções bem-vindas para um repensar crítico: riso, curiosidade, informação.

Já em Pernambuco, tocada pelo vídeo e pela vida da Iasmim do Recife, que adentrei em processo de pesquisa, senti-me intimada a conversar com um dos realizadores da obra:

“Participei do Movimento Ocupe Estelita tanto como militante e ocupante quanto como realizador audiovisual. E não há divisão entre essas dimensões. Ou seja, os filmes faziam parte de uma estratégia articulada pelo movimento numa disputa narrativa e de sensibilidades.” Pedro Severien, diretor de cinema e realizador audiovisual no Movimento Ocupe Estelita

Imagem do vídeo Vida Estelita, produzido durante o Movimento Ocupe Estelita e tendo Pedro Severien como um dos realizadores

Pedro divide sua experiência como “artivista” trazendo como ponto central a vivência e a autoria coletivo-colaborativa: todo o fazer artístico no contexto do movimento estava aberto para a interferência de múltiplas linguagens e era produzido em caráter de urgência e com um objetivo estratégico.

“A meu ver, toda arte é política. É impossível dissociar a dimensão estética de um posicionamento no mundo. Pra mim, essa é uma das potências da arte.”  Pedro Severien, diretor de cinema e realizador audiovisual no Movimento Ocupe Estelita

Espaço para o encontro: esse que ressoa como o grande motivador das ações de reapropriação das cidades também pode ser o desejo do artista que quer ser agente de transformação social. Como acontece com Pedro, a sensibilidade pode convidar a estar em contato com as pessoas e, a partir dessa aproximação, a imaginar novos mundos que serão traduzidos artisticamente.

“Quando a gente se aproxima do outro, se aproxima de outro lugar, e aí não é apenas que transitamos por outros espaços, mas esses espaços nos atravessam também.” Pedro Severien, diretor de cinema e realizador audiovisual no Movimento Ocupe Estelita

A presença passa a ser, portanto, motor, método e efeito. Em tempos de pensar o papel dos coletivos e das artes e das ruas e das cidades, os afetos se movem – e se transformam – quando alguma brecha incita uma arquitetura das cidades que é propriedade e precisa ser em função da vida.

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