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As aventuras de Jerusa do quente Sertão das Memórias às tundras geladas da Rússia

Ensaísta, professora e tradutora Jerusa Pires Ferreira (1938-2019) era, antes de tudo, uma humanista

Publicado em 22/05/2019

Atualizado às 16:46 de 22/05/2019

por Micheliny Verunschk

Sertaneja de Feira de Santana, interior da Bahia, Jerusa Pires Ferreira nasceu em 1º de fevereiro de 1938 e faleceu no dia 21 de abril de 2019. A distância entre essas duas datas foi preenchida por uma vida inquieta e instigante: para Jerusa, o céu não era o limite e por isso dedicou com intensidade sua vida aos estudos da oralidade, da performance, da literatura e da cultura populares, das mídias, da semiótica, das novelas de cavalaria e das figurações do Fausto. Ensaísta, professora, tradutora, publicou cerca de 20 livros e 180 artigos, influenciando gerações de estudiosos e pesquisadores brasileiros. Livre-docente da Universidade de São Paulo (USP) e professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), foi também responsável pela divulgação da obra de Paul Zumthor, medievalista e linguista suíço; de Henri Meschonnic, poeta e linguista francês; e de importantes semioticistas russos, como Iúri Lotman e V. V. Ivanov, com quem realizou, em 2015, uma série de entrevistas quando este era professor no Departamento de Línguas e Literaturas Eslavas da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos.

Mas isso ainda diz pouco sobre esta intelectual que, antes de tudo, era uma humanista. Jerusa percorria com a mesma desenvoltura os corredores da Universidade de Urbino, na Itália, onde se especializou em semiótica, e as corredeiras do Rio Amazonas; as bibliotecas da Alemanha, onde esteve no encalço das artimanhas fáusticas, e as ruas de um bairro popular em Nova Délhi. E, onde quer que estivesse, estava também o Sertão, o seu sertão que era ela mesma e um universo inteiro. No seu apartamento, vizinho ao Parque Buenos Aires, uma bela porta antiga fazia figura entre os muitos livros. Era a porta da casa de sua infância em Feira de Santana. E esse objeto, artefato e testemunha de tantas histórias, assegurava a Jerusa o caminho mágico e mítico para os retornos de sua aventura em volta ao mundo. Ela contava que desde criança seu sonho era viajar:

“Um dia minha mãe me pegou mentindo para moças atônitas, em frente a um grande navio que avistava no mar, da casa de minha tia, na Península de Itapagipe. Eu contava, aos 10 anos, o quanto tinha viajado por todo o mundo e o quanto já conhecia do Oriente. E elas, embasbacadas: tão pequena assim e já viajou tanto? Tanto tempo depois, essa aventura de viver, que iria se prolongar em crescente intensidade, estava marcada naquele dia por um gosto especial: o de virar tudo pelo avesso para ver como ficava, de conviver com os nossos antípodas, de falar e ouvir para se oferecer e para se abastecer de surpresas e emoções. Estava selada a aventura possível.”

De uma generosidade ímpar, suas aulas eram acontecimentos e não raro congregavam em torno delas poetas, músicos, artistas de várias expressões, outros professores, quem quer que julgasse em comunhão com o conhecimento. Muitas dessas aulas aconteciam na sala do seu apartamento. Como Sherazade, seduzia e enredava seus ouvintes em tramas ora teóricas, ora íntimas e, se em algum momento aquilo parecia labiríntico, Jerusa tinha a chave e a porta. Nada era por acaso. Nome fundante do conceito conhecido como Cultura das Bordas, a estudiosa compreendia a importância dos espaços não canônicos, periféricos e não institucionais para os deslocamentos e fricções insubmissas da cultura. Da magia negra de São Cipriano às fotonovelas, das marcas do folclore russo presentes na literatura de cordel feita no Nordeste brasileiro aos poemas de Óssip Mandelstam, dos Faustos mestiços a Zé do Caixão, ela ensinava que no tecido vivo das bordas cabem galáxias inteiras.

Jerusa publicou, entre outros, Cavalaria em Cordel: o Passo das Águas Mortas (2016), Matrizes Impressas do Oral (2014), Cultura das Bordas: Edição, Comunicação e Leitura (2010), Armadilhas da Memória (2004), Fausto no Horizonte (1995) e O Livro de São Cipriano: uma Legenda de Massas (ganhador do prêmio Jabuti de 1993). Criou ainda o Centro de Estudos da Oralidade e a sua revista, Bordas, na PUC/SP; o Núcleo de Estudos do Livro e da Edição na ECA/USP, ao lado de Plínio Martins Filho; e a coleção Editando o Editor. Fundou, com os músicos Elomar e João Omar e com o artista plástico Juraci Dórea, a IV Real Academia, uma misteriosa confraria sertaneja na qual foi sagrada cavaleira.

Jerusa foi casada com o intelectual e tradutor Boris Schnaiderman, falecido em 2016, por 30 anos.

Jerusa Pires Ferreira, sua vida e obra, espera ser descoberta pelo Brasil, porque só assim será possível o seu regresso do Reino do Vai-Não-Torna, o reino das mirabolantes façanhas dos cordéis, no qual ela se aventurou no último Domingo de Páscoa.

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