O Carnaval

Nos anos 1970, os blocos de mortalha se popularizavam no Carnaval de Salvador, exigindo dos candidatos a integrar o grupo que preenchessem uma ficha com endereço e foto. Moradores das periferias e negros eram recusados.

Até que, em 1º de novembro de 1974, foi fundado no bairro da Liberdade o Ilê Aiyê, composto exclusivamente de negros. Passaram três meses se preparando para o primeiro desfile, cujo tema era responder à proibição velada de os negros desfilarem no circuito do Carnaval da cidade. Proibição não oficial, nunca escrita em decreto. É assim até hoje, há restrições que não se estabelecem em regras públicas, o preconceito age em silêncio.

Os dois amigos carnavalescos que já agitavam um grande grupo de pessoas em festas e viagens, Vovô e Apolônio de Jesus (Salvador, 1952-1992), chamaram mais gente para o grupo e criaram um estatuto. Dete Lima (Salvador, 1952) pensou a primeira fantasia. Compraram tecidos no comércio da Liberdade, se vestiram de branco e se enfeitaram, usando esses panos em torços (nome dado aos turbantes nos terreiros), faixas e adereços. Trançaram os cabelos, invocaram as raízes, as Áfricas em memórias e referências.

À frente do grupo, foi uma das maiores sacerdotisas da história das diásporas africanas, Mãe Hilda Jitolu. Era tempo de repressão militar e ela decidiu ser abre-alas do bloco. Havia uma música tema, “Que Bloco É Esse”, composição de Paulinho Camafeu, hoje gravada e regravada por uma dezena de artistas, que vão de Gilberto Gil a O Rappa, e muita gente sabe cantar de cor.

O desfile transcorreu sem incidentes. Quem viu sabe o que foi. Um grupo de negros fazendo política com cultura. Levavam cartazes que denunciavam o racismo – para quem não entendesse a evocação da canção. A reação da mídia de Salvador foi qualificar a problemática racial como importação de um costume dos Estados Unidos, pois no Brasil não havia racismo. O preconceito age em silêncio e não permite ser revelado.

Os anos seguintes são de crescimento do Ilê, de sua lenda. Em 1976, surge o primeiro tema relacionado à África, os guerreiros Watusi, e o primeiro tecido é artesanalmente pintado. Dois anos depois, a primeira rainha, Mirinha, é eleita Deusa do Ébano; surge o símbolo do perfil azeviche, são definidas quatro cores para o bloco e é produzido o primeiro tecido sob medida.

As sementes do projeto pedagógico do Ilê já estão lançadas, gerando pesquisas anuais sobre os temas para munir a equipe de produção do Carnaval – os compositores que vão concorrer com as músicas, o desenhista do tecido, a diretora artística, Dete Lima, as candidatas a rainha e quem mais for produzir para o bloco.

Registro da saída do Ilê Aiyê no Carnaval de 2018 | foto: Richner Allan

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A política além do Carnaval

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O Nome

Ilê Aiyê foi o nome escolhido por Mãe Hilda para o bloco.

Vovô, inspirado nos movimentos afro-americanos, queria Poder Negro. Mas ficou a vontade da matriarca, ficou a África no nome em iorubá, idioma nigero-congolês usado nos ritos religiosos afro-brasileiros no qual ilê significa “casa” e aiyê “terra”, o mundo terreno. Na tradução de Mãe Hilda, a casa de todos. Na história do bloco, dos versos da música do primeiro Carnaval, o mundo negro que o Curuzu veio mostrar.

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Negros Nobres

Nobres negros

A festa e a arte são territórios habitados pela beleza e possuem poder de legitimação. A história do Ilê Aiyê é exemplo desse pensamento. Repetindo o óbvio que salta aos olhos, que são belos os negros, a cada saída do bloco essa beleza foi legitimada.

Vovô lembra da paixão que o Ilê despertou em músicos da tropicália, como o começo sem volta do movimento que recolocou em lugar de nobreza os negros do Curuzu.

Esse fato marca a história do negro baiano. A roupa colorida, o cabelo trançado, o orgulho e a beleza de ser negro – assumir a negritude, depois do Ilê Aiyê, se tornou mais fácil. O boicote às vozes brancas de domínio e exploração não era mais hegemônico. A voz do Ilê cantava outra história.

A evolução da raça pode abalar o mundo!

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Tecidos e Adereços

A origem é uma força e ela se manifesta de diferentes maneiras, entre as quais estão os costumes, a estética e a beleza, que habitam a festa e a arte e têm poder de legitimação.

Nas histórias das diásporas africanas, os tecidos estão presentes não apenas cobrindo as pessoas, são praticamente personagens.

Primeiramente, eram um elemento de identificação das comunidades, das tribos, dos grupos.

As pessoas capturadas e obrigadas a cruzar o Atlântico nos navios negreiros levavam muitas vezes apenas esses tecidos em seus corpos.

Como os grupos eram separados na viagem – para enfraquecer as resistências à violência sistemática –, as mulheres começaram a usar esses tecidos para garantir uma possibilidade de reencontro, principalmente das crianças apartadas dos pais. Faziam pequenas bonecas, com pedaços de suas roupas cortados à mão, atados com nós e esperança. Essas bonecas eram chamadas de abayomi.

Passados alguns anos, o tecido voltou a ser um elemento de identificação no Curuzu.

A cada ano, para cada desfile do bloco, metros e metros de tecido são produzidos com estampas específicas relacionadas a cada tema. A trama de desenhos conta histórias. O resultado cobre os belos corpos negros nos desfiles dos blocos e depois vira item de colecionador, sagrado, e é usado como elemento de decoração e recordação.

Dois artistas são responsáveis pelos 44 tecidos que o Ilê Aiyê já produziu: de 1980 a 2005, o artista visual Jota Cunha (José Antonio Cunha – Salvador, 1948); daí em diante, Mundão (Raimundo Sousa dos Santos – Salvador, 1957). A obra deles, em extensão, certamente os faz destaques de nosso tempo.

Além desses tecidos, que viram adereços de corpo e cabeça, o Ilê Aiyê resgatou a tradição estética dos enfeites de palha, contas e búzios. Colares, coroas, brincos, um espetáculo de cores e texturas.

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Ah, se não fosse o Ilê Aiyê...

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Estreia

Nota do jornal A Tarde, referente à primeira saída do bloco Ilê Aiyê, publicada em 12 de fevereiro de 1975 | imagem: reprodução

Transcrição da nota:

Bloco racista, nota destoante

Conduzindo cartazes onde se liam inscrições tais como: “Mundo Negro”, “Black Power”, “Negro para Você”, etc., o Bloco Ilê Aiyê, apelidado de “Bloco do Racismo”, proporcionou um feio espetáculo neste carnaval. Além da imprópria exploração do tema e da imitação norte-americana, revelando uma enorme falta de imaginação, uma vez que em nosso país existe uma infinidade de motivos a serem explorados, os integrantes do “Ilê Aiyê” – todos de cor – chegaram até a gozação dos brancos e das demais pessoas que os observavam do palanque oficial.
Pela própria proibição existente no país contra o racismo é de esperar que os integrantes do “Ilê” voltem de outra maneira no próximo ano, e usem em outra forma a natural liberação do instinto característica do Carnaval.
Não temos felizmente problema racial. Esta é uma das grandes felicidades do povo brasileiro. A harmonia que reina entre as parcelas provenientes das diferentes etnias, constitui, está claro, um dos motivos de inconformidade dos agentes de irritação que bem gostariam de somar aos propósitos da luta de classes o espetáculo da luta de raças. Mas, isto no Brasil, eles não conseguem. E sempre que põem o rabo de fora denunciam a origem ideológica a que estão ligados. É muito difícil que aconteça diferentemente com estes mocinhos do Ilê Aiye.