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Esculturas | Tronco que manda, tronco que convida: a parceria de Véio com a natureza

Criadas sem derrubar nenhuma árvore, apenas com madeira encontrada, as esculturas do artista sergipano reelaboram a cultura sertaneja, criam mitologia própria e nos sugerem histórias

Publicado em 18/02/2021

Atualizado às 19:08 de 17/08/2022

Esculturas destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural. A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.

A escultura é feita com um galho de árvore pintado e representa uma criatura vermelha e branca, com três pés e duas cabeças.

Véio
Os Gêmeos, 2013
tinta acrílica e madeira
85 x 72 x 124 cm
Acervo Banco Itaú
André Seiti/Itaú Cultural

por Duanne Ribeiro

Nossa imaginação pode encontrar desenhos nas nuvens, rostos nas tomadas elétricas, animais nas sombras projetadas pelos nossos dedos em uma parede. Nossa imaginação pode antecipar em um material bruto – mármore, bronze, argila etc – as imagens que ela tem o poder de constituir; após um trabalho, tornam-se figuras históricas, divindades, metáforas. Na obra do artista sergipano Cicero Alves dos Santos, conhecido como Véio, essas duas vertentes se unem: operando sobre galhos e troncos de árvore, ele descobre formas e as concede à madeira, produz fábulas ou escuta a natureza contá-las, gera personagens ou é apresentado a eles. Véio sabe ver.

Veja também:
>> Todos os textos, nas várias curadorias, sobre obras do acervo do Itaú Cultural

Os Gêmeos, escultura em destaque aqui, é um exemplo da primeira prática. Em volumes, curvas e retas que poderiam ter permanecido secos e silenciosos, foi entrevista essa criatura vermelha e branca, com três pés e duas cabeças; trata-se de um ser uno e dúplice, como Jano, deus romano da transição, cujas faces olham uma para o passado, outra para o futuro (e do qual um dos templos chamava-se Ianus Geminusgeminus; em latim, quer dizer “duplo”...). Essa mesma passagem do neutro à fantasia acontece, entre outros trabalhos, em O Primata e em O Aniversário.

Não é fácil especular histórias e personalidades para essas esculturas? Esse primata verde, para mim, parece assustado, posto contra a parede. O animalzinho trípede azul-claro (aniversariante? Presente de aniversário de alguém?) está muito feliz com seu grande osso ou presa. Que narrativas vêm a você no contato com este bicho branco de pena na cabeça, sobrancelha grossa e língua de fora? Como late este dálmata (?) de pintas redondas, cara chapada, sem nariz e boca?

Após essa brincadeira do imaginário, podemos retomar o fio da meada e falar dos exemplos da segunda prática – que interfere mais no substrato. Nesse documentário da Galeria Estação, é possível ver algumas criações nesse sentido – como um índio “só, doente e abandonado”, “diante de um luta que nunca vai conseguir vencer” (aos 3’28”) ou todos os personagens de um enterro que, quer o artista, representa a perda da cultura quando um sábio morre (14’42”). Em peças de pequeno porte – às vezes do tamanho de um palito de fósforo – é isso também o que é realizado: veja esta canoa e seus pequeninos navegantes, esta escada onde no alto alguém espera...

Na linguagem do escultor, esses procedimentos são definidos pelo material que ele tem à mão: são troncos abertos ou troncos fechados. Explica ele, “o tronco fechado só me deixa fazer o que ele manda. Ele me diz ‘vai em frente’, mas quem cria é a natureza. O tronco aberto é liso, me deixa fazer o que eu quero. Tenho como entrar nele, trabalhar ele, mudar”. No texto curatorial da exposição Véio – a Imaginação da Madeira, o crítico Agnaldo Farias resume seu método:

Véio trabalha os troncos que lhe chegam já abatidos: mulungu, jurema, goiabeira, graúna, barriguda. Ele jamais derruba árvore. Aproveita a madeira morta, para como um demiurgo do sertão dar-lhe nova vida. Reconhece-se “um criador, [que] fazia aqueles animais que não existiam no universo, mas passavam a existir porque os estava fazendo”. Parodiando [o poeta] João Cabral de Melo Neto, Véio é quando uma árvore tem voz.

Além dessas madeiras autônomas ou indulgentes, há outra binariedade decisiva no pensamento de Véio: aquela entre o artista “que vive da arte” e “o que vive de fazer”. O primeiro, diz ele, “quer vender tudo e ir embora”; digamos, a produção artística é o seu ganha-pão. O outro “nunca está pensando na parte financeira. Está pensando sempre no que ele criou”. Assim, conta o escultor,

todas minhas peças têm valor igual. Isso de ver arte como comércio eu não acompanho. Pra mim, o que vale é você estar de bem com você e fazer aquilo de que gosta. Essa é a maior riqueza. Você precisa fazer por prazer. No meu caso, o prazer vem quando olho a obra e penso que fiz e talvez não tivesse outro pra fazer. Essa é a minha forma de pensar. E a luta continua.

Mas, se formos ver, não são esses dois tipos de artista eles também gêmeos?

Cicero Alves dos Santos, o Véio, é escultor e criador do Museu do Sertão, estabelecido no Sítio Soarte, em Feira Nova (SE), que guarda cerca de 17 mil obras das culturas popular e sertaneja. O nome artístico vem da infância – por gostar de estar com os adultos e ouvir suas histórias, foi apelidado de Véio. Herdeiro e defensor da tradição oral, elabora suas invenções a partir das anedotas da sua comunidade, de crônicas morais e da mitologia do sertão. Para saber mais, leia o catálogo da mostra Véio – a Imaginação da Madeira e acesse a Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. Veja também o texto “Recortes sobre Véio, do educativo do IC.

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