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Manoel de Barros é favela

Em sua coluna mensal, Alexandre Ribeiro faz um paralelo entre Manoel de Barros e sua existência como jovem nascido na periferia de São Paulo

Publicado em 11/03/2019

Atualizado às 12:00 de 18/10/2022

Por Da Quebrada Pro Mundo com Alexandre Ribeiro

Manoel herdou uma fazenda e foi um “vagabundo profissional”. E eu? Já não tive tanta sorte. De raspão, só herdei a genuína inutileza do nome: sou Alexandre Barros. Ele, do interior do matagal de Cuiabá. Eu, de dentro de uma ocupação na favela. O que eu e Manoel temos em comum? Você terá de se miudar para entender.

O poeta Manoel de Barros (imagem: Marcelo Buainain)

“A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso, para mim, não é aquele que descobre ouro.
Para mim, poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.”

Só de notar o sorriso serelepe desse tiozinho, olha, meu coração esquenta. Trilhões de vezes nós poderíamos copiar, ler e reler a obra desse maloqueiro. É poesia que pulsa a cada instante. Se não conhece, vale a pena conhecer. Entretanto, eu acredito que para hoje isso seria inútil demais.

(Até mesmo para ele, hein?)

Hoje, eu gostaria de falar dessas coisas que nos unem, meu amigo Manoel. Dessas miudezas que nos tornam gigantes.

Quando eu tinha 10 anos de idade eu escrevi este poema aqui:

 

Moradia

Não moro em Paulicéia

Não moro em São Bernardo

Não é por causa disso que eu fico magoado
 

Se chovesse dinheiro

Eu daria para a prefeitura

Para construir uma praça perto da minha rua
 

Eu queria morar em São Bernardo

Mas não deu

E em outro bairro minha família sobreviveu

* (imagem: Alexandre Ribeiro)

No hoje, leio o poema e vejo a gritante desigualdade social que vivi quando era criança. Precisava sair da minha cidade (Diadema, São Paulo) para ter ensino de qualidade. Só que, ao mesmo tempo, identifico nesses versos essa vontade de ser “vagabundo profissional”. Genuinamente, o poema foi escrito cortando a raiva. A raiva de ter de andar um bocado de manhã, e isso me deixar emburrado. Nitidamente, peripécia de miúdo. E quem diria, Manoel, que exatamente por andar hoje nós chegaríamos aqui?

“Quem anda nos trilhos é trem de ferro, sou água que corre entre as pedras: liberdade caça jeito.”

Ser um andarilho entre as coisas que nos cercam foi o ensinamento que Manoel me entregou. Passear pela curva de vidro, abraçar árvore passarinheira e principalmente andar atento às inutilidades que servem de poema. Eita, Manoel danado!

“Noventa por cento do que eu escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira.”

Da mesma laia de Manoel, nós, esses esperançosos do mundo, somos todos inventores. Através da poesia vamos inventando futuros possíveis e sorridentes.

E foi exatamente dessa invenção que me brotou a felicidade em seu estado mais sólido. Na Ocupação Manoel de Barros, no prédio do Itaú Cultural, em São Paulo (SP), o meu sorriso (os nossos sorrisos) foi a coisa mais necessária. Nos enxergando nas pequenezas dos outros é que venceremos esses ditos “gigantes”. A poesia de Manoel relembra esse canhão de amadorismo que devemos ser.

No tratado geral das coisas da vida, Manoel é tão favela quanto qualquer um de nós. Nos ensinando a apreciar esse pouquinho entregue, ele – assim como a desigualdade – transforma o olhar para essa vida. Caramujos na lupa dos olhos celebram virtudes com caramujices. Uma gambiarra para que o chuveiro funcione se torna ficção científica e pedras, insetos e árvores são capazes de iniciar as melhores revoluções. O que nos une, Manoel, é essa força de ser pequeno. Essa força revolucionária de aceitar o pouco e com isso fazer poesia. A poesia de nosso sorriso é fazer tudo, mesmo só com um pouquinho.

Veja também:
>>Conteúdo exclusivo criado para a Ocupação Manoel de Barros

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