Sankofa

Há na tradição africana um conceito que capta o essencial da prática de Abdias: o sankofa, parte de um conjunto de ideogramas chamados adinkra, representado por um pássaro que volta a cabeça à cauda. O símbolo é traduzido por: “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”.

Essa ética transparece no esforço do povo negro por recuperar a sua ancestralidade e por apontar as sequelas da diáspora, a dispersão dos negros pelo mundo. A cada ação política ou artística, Abdias dava mais um passo nesse sentido.

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Quem era Abdias?

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Cronologia - últimas conquistas em vida

Abdias Nascimento cronologia - últimas conquistas em vida
© Chester Higgins/chesterhiggins.com

1991 – Brizola assume o governo do Rio de Janeiro e Darcy Ribeiro ingressa no Senado. Em 10 de abril, convidado pelo governador Leonel Brizola, Abdias Nascimento assume a Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações Negras (Sedepron). Em agosto do mesmo ano, convidado por Brizola, Darcy Ribeiro assume a Secretaria de Projetos Especiais do governo fluminense e Abdias assume a sua cadeira no Senado Federal, permanecendo seis meses como senador.

1992 – A Sedepron, novamente comandada por Abdias, passa a se chamar Secretaria de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras (Seafro).

1995 – Abdias recebe a Medalha 300 Anos Zumbi.

1997 – Com a morte de Darcy Ribeiro, Abdias assume definitivamente o cargo de senador, permanecendo no posto até o término da legislatura, em 1999. Abdias apresenta o PLS nº 75/1997, que versa sobre o crime de racismo. Aprovado no Senado, o texto foi remetido à Câmara e aprovado depois de parecer favorável dos relatores Alceu Collares (PDT-RS) e Fernando Gabeira (PV-RJ). Após esse trâmite, o documento foi reencaminhado para o Senado somente em 2009. Aprovado na CCJ com parecer favorável do senador Paulo Paim (PT-RS), o texto foi incluído na pauta de votação somente em 2013.

1999-2000 – Abdias assume a Secretaria Estadual de Cidadania e Direitos Humanos do Estado Rio de Janeiro durante o governo de Anthony Garotinho, responsabilizando-se paralelamente pela edição da Revista Quilombo.

2000 – Recebe o título de doutor honoris causa, conferido pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

2001 – Recebe o Prêmio Unesco, na Categoria Direitos Humanos e Cultura de Paz.

2004 – Em comemoração dos dez anos do fim do apartheid, Abdias recebe um prêmio concedido pelo Governo da República da África do Sul (Prêmio Orilaxé) em reconhecimento à sua atuação na campanha internacional em prol da democratização do país. Abdias expõe seus trabalhos na Casa da Moeda do Rio de Janeiro em exposição organizada pelo Ipeafro com apoio da Petrobras, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e da Fundação Palmares.

2006 – Abdias recebe o título de doutor honoris causa da Universidade de Brasília (UnB). Mostra com trabalhos de Abdias acontece na Galeria Athos Bulcão, em Brasília. Em julho, Abdias Nascimento participa da II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora (II Ciad), em Salvador. Na ocasião, o presidente Lula lhe confere a Ordem de Rio Branco, no grau de comendador.

2007 – Recebe o título de doutor honoris causa da Universidade Obafemi Awolowo, de Ifé, na Nigéria, o título de Cidadão Soteropolitano e a Medalha Zumbi dos Palmares, esses dois últimos conferidos pela Câmara de Vereadores de Salvador.

2008 – Abdias recebe o título de doutor honoris causa da Universidade do Estado da Bahia (Uneb).

2009 – Abdias é indicado oficialmente para o Prêmio Nobel da Paz. O PLS nº 75/1997 apresentado durante o período em que Abdias ocupou o cargo de senador é aprovado pela Comissão de Constituição de Justiça do Senado.

2011 – Abdias comemora seu 97º aniversário na quadra da escola de samba Unidos da Villa Rica. Em 24 de maio, Abdias morre no Hospital dos Servidores do Estado, no Rio de Janeiro.

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Abdias na sua formatura em Economia pela Universidade do Rio de Janeiro, 1938.
1938: Abdias na sua formatura em Economia pela Universidade do Rio de Janeiro | Acervo Ipeafro

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O legado de Abdias

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Abdias Nascimento abraça sua ex-mulher Léa Garcia
Abdias abraça sua ex-mulher Léa Garcia | Acervo Ipeafro

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Adinkra

Adinkra é o nome de um conjunto de símbolos ideográficos dos povos acã, grupo linguístico da África Ocidental que povoa a região que hoje abrange parte de Gana e da Costa do Marfim. Os símbolos são estampados em tecido, esculpidos em peças de ferro usadas para pesar o ouro, talhados em bancos reais e em peças de madeira que anunciam a soberania dos reinos.

Adinkra significa “adeus à alma”, e as pessoas usam o tecido com essas estampas em ocasiões fúnebres e em festivais de homenagem a pessoas importantes. São mais de 90 símbolos, cujo significado se transmite nos nomes e nos respectivos provérbios.

Os ideogramas se baseiam em figuras de animais, plantas, corpos celestiais, o corpo humano, objetos feitos pelo ser humano ou formas abstratas. O mesmo princípio pode ser grafado de várias formas, pela representação do ser ou do objeto e pela estilização gráfica dessa imagem. Sankofa, um dos adinkra mais conhecidos, significa a sabedoria de aprender com o passado para construir o presente e o futuro. Seu símbolo é o pássaro que olha para trás. Essa representação ganhou estilização gráfica na forma de dois símbolos que transmitem a ideia expressa no provérbio “nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou atrás”.

Trata-se, enfim, de um antigo sistema africano de escrita. A importância desse fato é incomensurável, pois a ciência etnocentrista europeia negou que a África tivesse história alegando que seus povos não criaram sistemas de escrita. Até hoje prevalece a noção de uma África de tradição exclusivamente oral, como se nela não existisse a tradição escrita. Mas a escrita nasce na África com os antecessores dos hieróglifos egípcios, e existem inúmeras escritas africanas anteriores e posteriores à escrita árabe.

Os símbolos adinkra incorporam, preservam e transmitem aspectos da história, da filosofia, dos valores e das normas socioculturais dos povos acã, e vêm sendo adotados na diáspora como parte da missão de recuperar e valorizar essas antigas tradições que compõem o legado ancestral africano.

Os significados dos adinkra presentes nesta galeria foram retirados do livro Adinkra: Sabedoria em Símbolos Africanos, com organização de Elisa Larkin Nascimento e Luiz Carlos Gá.

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Com a palavra, o hoje

Abdias Nascimento, personificação da luta antirracista no século XX no Brasil
Acervo Ipeafro

O legado de Abdias Nascimento é forte e ecoa. Para muitos, ele é visto como a personificação da luta antirracista no século XX no Brasil. A seguir, entenda como grupos que pensam questões raciais nos dias de hoje reverberam as principais ideias de Abdias sobre essa luta constante.

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Manifesto Crespo

Como vocês veem a luta atual contra o racismo e pela afirmação da identidade negra? O que tem mudado, o que ainda precisa mudar?

A luta é contínua e cíclica. A todo momento estamos numa árdua tarefa de resistir, conhecer e lutar. Nossos antepassados fizeram o possível para que a nossa geração pudesse ter acesso ao conhecimento para conseguir avançar e assumir com mais dignidade e força as políticas de combate ao racismo e pela afirmação da identidade negra. De certa forma, conseguimos nos articular e nos reinventar em estratégias para comunicar e disputar os espaços que ainda são de privilégio de uma comunidade que sempre teve a oportunidade, seja pela cor da pele, seja pela classe social. O que tem avançado são as articulações de mulheres negras na luta contra o machismo e o racismo, através de redes que discutem temas específicos, como a maternância e o acesso ao empreendedorismo, entre outros. E, nessa agenda, a luta contra a lesbofobia e a transfobia tem ganhado mais espaço, pois há um esforço de unificação da luta das mulheres negras respeitando as suas diversidades.

Como as atividades do Manifesto Crespo se encaixam nessa luta? O que vocês conseguiram transformar com seu trabalho?

O Manifesto Crespo é uma dessas estratégias de luta pela identidade, pelo direito ao corpo com suas características e sua história. É um trabalho delicado e ao mesmo tempo impactante, pois utilizamos as tranças, os turbantes e, atualmente, os adinkra para religar a compreensão de corpo-identidade, questionando quais são as violências que percorrem o corpo negro, principalmente das mulheres negras, quando nos referimos ao cabelo. Cada roda de conversa ou formação com jovens, crianças e educadores é uma catarse. Memórias sobre os cuidados com o cabelo, histórias de situações de racismo na escola e na família trazem à tona uma dolorida realidade de segregação e exclusão. A partir dessas experiências coletivas, em que utilizamos diversas estratégias artísticas e pedagógicas, conseguimos avançar para a discussão política do papel de cada um no combate ao racismo, e isso tudo passa pelo corpo e pelo que você comunica através dele. A trança, para o Manifesto Crespo, atravessa o campo concreto e se faz simbólica, pois é o ato de se misturar, tecer, construir laços. Desse modo, temos realizado encontros de trocas com comunidades originárias, como as guaranis mbyas, as imigrantes africanas e latinas, comunidades quilombolas, com o intuito de tecer as histórias de resistência e a nossas práticas artísticas.

Como lutar contra o racismo, seja na cultura, seja na política, seja no cotidiano? O que cada um de nós pode fazer?

A luta contra o racismo começa quando se desconstrói a ideia hegemônica de “branquitude” e toda essa avassaladora narrativa eurocêntrica que nós é ensinada nas escolas, onde não nos reconhecemos como sujeitos da história. Os povos originários, chamados de índios pelos europeus, e nós, descendentes de africanos escravizados chamados de negros, temos esse desafio de reconstruir a identidade brasileira que se quer europeia nos seus modos e costumes. Valores como ancestralidade nos ajudam a caminhar com passos mais firmes e com respeito aos que vieram antes de nós e aos que vão vir.  Junto a isso, temos que dar valor ao nosso cotidiano, que está pincelado com muitas ações bacanas e atividades de muitos coletivos, saraus e espaços de trocas que rompem o espaço do medo e dos toques de recolher. Na literatura, no teatro e no cinema, cada vez mais estamos protagonizando as produções e é preciso ampliar e atingir mais pessoas para que reflitam sobre como ainda são árduos os nossos acessos e que isso não tem a ver com falta de conhecimento ou de capacidade. A luta continua sabendo-se que é o senso de responsabilidade para se garantir mais dignidade e direito à vida que nos fará caminhar para uma sociedade brasileira menos genocida.

Como veem o legado de Abdias Nascimento? Conhecem seu trabalho, ele os influenciou de alguma maneira, traz algo que lhes interessa?

Abdias Nascimento nos deixou um legado que podemos traduzir na palavra “caminhos”. São tantas as iniciativas que ele proporcionou para a comunidade afro-brasileira, tanto no campo das artes quanto no campo da política, mostrando que temos sim que disputar todos os espaços de poder e voz… Abdias foi um desbravador e, generosamente, nos deixou muitas possibilidades para trilhar, assim como fez Lélia Gonzalez ao apontar com pioneirismo o recorte de gênero no movimento negro e o protagonismo das mulheres negras na luta, que se faz tanto no campo da vida privada quanto no da pública. Ainda como mulheres negras, temos essa tripla jornada de estar servindo as estruturas patriarcais brancas no trabalho assalariado, no campo privado (nos cuidados com a família) e no campo político (com a voz de luta contra o machismo e a violência contra as mulheres). Nessa luz, com as contribuições de Lélia Gonzalez, Beatriz do Nascimento e Carolina Maria de Jesus, entre outras guerreiras memoráveis, os coletivos e o movimento de mulheres negras têm se erguido e avançado no campo político e nas demais áreas. Estamos colocando nossa cara no sol, lindas, pretas e lacradoras, porém, sem esquecer daquelas que nos legaram a luta contra o racismo e o machismo.

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"O silêncio nunca vai nos proteger. Isso só nos deixa como alternativa falar, denunciar, gritar, cantar."

Blogueiras Negras

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Blogueiras Negras sobre Abdias

Abdias foi um dos maiores defensores de nossa cultura, nos deixando imenso histórico de luta sem dúvida alguma, mas somos mais influenciadas por Maria de Lurdes Vale Nascimento, ativista, assistente social, jornalista, professora. Figura central entre os intelectuais que pensaram o movimento do Teatro Experimental do Negro, sua presença ainda é silenciada por ter sido companheira de Abdias Nascimento. Somos tão inspiradas por essa mulher que nossa luta é para que nem ela nem outras sejam apagadas da história ou trazidas como ícones ou referências de menor importância.

Maria de Lurdes Vale Nascimento disse: “Se nós, mulheres negras do Brasil, estamos mesmo preparadas para usufruir os benefícios da civilização e da cultura, se quisermos de fato alcançar um padrão de vida compatível com a dignidade da nossa condição de seres humanos, precisamos sem mais tardança fazer política”. É nesse tipo de fonte que o Blogueiras Negras também bebe para seguir em frente, é uma das mulheres negras que nos inspiram.

Aos pouquinhos estamos visibilizando a importância da luta contra o racismo. Tivemos algumas conquistas pontuais nesse sentido, como as cotas no serviço público e nas universidades e o ensino da cultura e da história africana e afro-brasileira nas escolas, conquistas que ainda não se cumprem em sua totalidade, mas que ao menos fomentam o debate acerca de sua necessidade. Somos diversos na produção de mídia e conteúdo, estamos conseguindo dialogar cada dia mais em busca de mudança e igualdade.

Mas ainda somos as que mais morrem, as que mais sofrem violência doméstica, os jovens mais assassinados, temos muito pela frente.

Lélia Gonzalez disse-nos que precisamos de nome e sobrenome, senão o racismo nos dá o nome que quiser. E nos chama de “menores”, “mulatas”, algo que já não aceitamos. Temos uma estética e uma cultura negra valorizada, este é o momento de oferecermos um novo olhar sobre quem somos, produzir novas histórias sobre nós. Histórias reais.

O Blogueiras Negras, na intenção de garantir que a voz das mulheres negras seja ouvida, propõe que deixemos de ser objetos de estudo e passemos a ser protagonistas das nossas próprias histórias. É mais do que um site: é também uma comunidade ativa com mais de 1.200 mulheres debatendo questões que lhes são caras e obviamente, pelas opressões e violências pelas quais passam também, transformando isso em texto, em vídeo, em denúncias. O Blogueiras Negras é um espaço de luta e fortalecimento. Juntas, conseguimos debater e ir atrás daquilo que vai modificar nossas vidas, manter vivos nós mesmas e os nossos.

Para lutar contra o racismo…

A luta contra o racismo ocorre no dia a dia e de diversas formas.

Através da música, da literatura, no trabalho cotidiano ou na escola. Cada um, do seu jeito e com as ferramentas que tem, luta contra a opressão, denuncia e faz o outro se repensar.

Aprendemos com Audre Lorde que o silêncio nunca vai nos proteger. Isso só nos deixa como alternativa falar, denunciar, gritar, cantar e quebrar esse silêncio de tantos anos. Nunca mais calar diante de nada que nos faça mal, que nos deixe desmotivado, que nos desvalorize ou mine nossa autoestima. E essa quebra de silêncio pode ser branda ou incisiva, repleta de amor ou de raiva, porque a raiva também é um instrumento poderoso que pode ser transformador.

O nosso desejo para todos, pretos ou não, é: nunca se calem diante do racismo. Essa é a lição das mulheres negras, essa é a lição que aprendemos com o feminismo negro.

 

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Guerreiro Ramos, Abdias Nascimento e João Conceição, em foto do começo dos anos 50
Guerreiro Ramos, Abdias Nascimento e João Conceição, em foto do começo dos anos 50 | Acervo Ipeafro

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"Dizer que o racismo é velado no Brasil é absurdo. Ele é muito escancarado, só não vê quem não quer."

Afreaka

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Encontro de intelectuais negros em São Paulo, 1954. Na foto se encontram José Correia Leite, duas mulheres não identificadas, Abdias Nascimento, Sebastião Rodrigues Alves, Fernando Góes e José Pellegrini
São Paulo (SP), 1954: encontro de intelectuais negros. José Correia Leite, duas mulheres não identificadas, Abdias Nascimento, Sebastião Rodrigues Alves, Fernando Góes e José Pellegrini | Acervo Ipeafro

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Semente

“Uma irmã de meu pai era muito parecida com Abdias, tinha o olhar forte cheio de ternura, rosto leve, bonito e gentil, onde vagava suave um jeito de poesia.

Minha tia trabalhava como cozinheira. Ganhava muito pouco e gastava quase todos os seus ganhos comprando passarinhos em gaiolas que eram vendidos nas feiras livres da cidade.

Ela carregava suas gaiolas até uma mata próxima de sua casa e ali com grande alegria soltava seus pássaros, observando os voos.

Um dia minha tia Maria ficou doente. Minha mãe dizia que ela não se tratava gastando seu dinheiro com passarinhos. Que iria morrer em algum hospital como indigente. Meu pai dizia:

– Este negócio de morte não é com Maria.

Minha mãe, irritada, dizia:

– Quer dizer que sua irmã vai virar semente?

E meu pai respondia orgulhoso:

– Ela já é Semente. Semente Maria.

Abdias é Semente. Criou muitas árvores em vários cantos do planeta. Nos olhos fortes havia uma ternura grandiosa. Em seu rosto leve a poesia de todos os poetas. Esse negócio de morte nunca foi para Abdias. Semente Abdias.

 

 

(Texto de Iara Rosa, escritora e artista plástica

Búzios, outubro de 2011)