Apolítico Político

Segundo um artigo da revista Perseu escrito pelo professor de história Alexandre Fortes, Antonio Candido sempre se referia a um dilema interno, o conflito entre, de um lado, o que “define como seu temperamento conservador, sua tendência ao apoliticismo, e, de outro, o imperativo de consciência que o conduziu à militância”. No que se refere à política partidária, o professor atuava menos por gosto do que por dever. Por outro lado, como reforça a sua filha Laura de Mello e Souza, via na política “um espaço de reflexão fundamental”.

A atividade política do crítico se iniciou quando estudante, em uma frente de resistência ao Estado Novo – regime governado por Getúlio Vargas de 1937 a 1945 – dos alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Em 1945, com outros intelectuais – incluindo seu mentor político, o crítico Paulo Emílio Salles Gomes –, fundou a União Democrática Socialista (UDS), movimento que também se opunha a Vargas. O grupo, em 1947, formaria o Partido Socialista Brasileiro (PSB).

Também marcou posição em relação à ditadura civil-militar de 1964 – em 1977, assinou o Manifesto dos Intelectuais, abaixo-assinado contra a censura que representou a maior manifestação em oposição ao regime militar feita por essa classe desde 1968, com mais de mil assinaturas. Em 1980, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), que, segundo ele, realizava as suas pretensões igualitárias e democráticas desde a UDS.

Com a idade, Candido se afastaria da participação política e intelectual, com manifestos raros ao fim da vida, como em 2015 e em 2016 contra o impeachment de Dilma Rousseff.

Em suma, todo o seu percurso foi marcado por uma postura que ele reconheceu na revista Trans-Form-Ação: “Confesso que, por toda a minha vida, mesmo nos momentos de mais agudo esteticismo, nunca fui capaz de perder a preocupação com os fatores sociais e políticos, que obcecaram a minha geração como uma espécie de memento e quase de remorso”.

Militância

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Política como Espaço de Reflexão Fundamental

Laura e Marina de Mello e Souza comentam a trajetória política do seu pai, Antonio Candido, da resistência a Getulio Vargas ao afastamento progressivo desse tipo de questão ao fim da vida.

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Resistência à Opressão e Ideal Socialista

O advogado Celso Lafer analisa as posições políticas de Antonio Candido. Aponta que, em regimes autoritários como o de Getulio Vargas, procurava se alinhar a movimentos pela democratização. Já em períodos de democracia, construía uma ideia de socialismo.

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foto: arquivo do IEB/USP – Fundo Antonio Candido de Mello e Souza

Antonio Candido em aula pública durante greve na Universidade de São Paulo (USP), em 2000.

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O tipo central do nosso tempo

Antonio Candido, no caderno Revolucionários, esboça uma pesquisa para lidar com uma figura que, à sua época, assumira a centralidade que receberam “o herói civilizador nas culturas primitivas, o santo no medievo cristão, o guerreiro nas civilizações militares e feudais, o capitalista na civilização burguesa” – isto é, o revolucionário. Nas poucas páginas do projeto, o sociólogo descreve esse tipo de ator social, seus desenvolvimentos – os diferentes caráteres que chega a ter – e suas problemáticas.

Assim, Candido afirma que o revolucionário é uma manifestação do rebelde, que vem a existir após a Revolução Francesa de 1789. No século XIX, esse personagem ganha a sua “forma mais completa” com o revolucionário profissional. A esses militantes dedicados integralmente a uma causa – diz o professor em “Radicais de ocasião”, artigo publicado pela revista Discurso em 1978 – “o nosso tempo deve algumas das suas realizações mais espantosas, tanto as redentoras quanto as atrozes”.

Acompanhamos ainda em Revolucionários uma análise de como o gesto revolucionário se transforma de acordo com o território em que é realizado (teríamos “uma divisão do mundo em áreas reformistas e revolucionárias”) e segundo um enrijecimento que se inicia já na profissionalização e atinge seu máximo na burocracia estatal. A partir dessa visão, e criando ainda outros conceitos, Candido interpreta a evolução da União Soviética.

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Transcrição

Um estudo sociológico sobre o revolucionário como tipo social, que obedeceria ao seguinte plano provisório.

O ajustamento do indivíduo com a estrutura social se faz mediante uma série de fatores (coerções propriamente ditas, padrões ideais, relações concretas etc.) inclusive a adoção de uma atitude preferencial, à qual se refere a conduta ou o ideal de conduta.

Por isso, cada civilização, ou melhor, cada época forja por assim dizer um certo número de tipos humanos ideais, que representam como que a cristalização das principais expectativas de comportamento. Em nosso tempo, delimitou-se e tomou formas precisas a figura do revolucionário, do homem que toma por norma de conduta a transformação radical da sociedade, em função de um tipo de vida previsto como mais completo e mais humano. O revolucionário se caracteriza pelo fato desta norma de conduta absorver integralmente a sua personalidade, a ponto de deixar na sombra qualquer outra atividade. A sua forma mais completa é o revolucionário profissional, que se desenvolveu sobretudo na Rússia a partir dos meados do século XIX.

Como interpretar este fato? O trabalho, até nova ordem, poderia constar de partes.

Mostrar que o revolucionário constituindo embora uma manifestação do tipo do rebelado – presente em todas as culturas e em todos os tempos (ou quase…) – significa uma formação psicossocial moderna. Sob certos aspectos, corresponde ao “tipo central” do nosso tempo, como o herói civilizador nas culturas primitivas, o santo no mediano cristão, o guerreiro nas civilizações militares e feudais, o capitalista na civilização burguesa. Estes tipos não são sucessivos nem exclusivos, coexistem. Mas predominam um sobre os outros, e caracterizam mais exclusivamente certos momentos uns do que os outros. É que as maneiras de autorrealização individual variam, e tomam por eixo ora um, ora outro padrão ideal. Numa mesma civilização, num mesmo tempo, vários padrões ideais coexistem e predominam conforme o setor considerado da sociedade. As representações do homem comum acompanham com sincronia variável as representações dominantes; mas geralmente um padrão ideal só se universaliza quando durante algum tempo foi um padrão de minorias. Mesmo porque a sua universalização corresponde ao período em que a expectativa de comportamento se generaliza e o excepcional entra no ritmo normal da vida.

O revolucionário aparece realmente no mundo moderno com a Revolução Francesa – com os jacobinos que instauraram o terror depois de dominarem a Convenção.

Estudar, segundo Max Weber, a dialética da rotina e do carisma, este aparecendo como fermento de mudança nos períodos de transição. O revolucionário como o tipo carismático por excelência no período crítico que se abre com a Revolução Francesa.

Podemos realmente falar de revolucionário em dois setores: o carismático e o racional.

O romantismo desenvolve uma aceitação social bem acentuada em relação ao indivíduo rebelado e só, que interferiria na mudança por sua conta própria, por assim dizer. Influência do romantismo na acentuação do caráter satânico, rebelado, do inconformado. O anarquismo niilista como sua expressão suprema.

No entanto, a marcha inevitável do mundo moderno para a racionalização do comportamento (Weber) levando à rotinização do carisma revolucionário, que se intensifica no momento em que se racionaliza a tomada do poder. O leninismo exprime de certa forma o revolucionário racionalizado, em oposição ao romântico (anarquista, socialista humanitário), pela fusão do blanquismo (arte da revolução) com o marxismo (teoria da revolução).

Esta racionalização do revolucionário se exprime em duas etapas: 1ª – antes da tomada do poder, o “revolucionário profissional”; 2ª – depois da tomada do poder, o burocrata socialista, momento em que a rotinização do carisma chegou à sua última fase, com a liquidação do elemento individualista e romântico e a racionalização definitiva do comportamento político.

Aparece então o problema do âmbito de ação do revolucionário – ou seja, dentro de que limites se pode falar em revolucionário, do individualismo à rotina.

Os teóricos anarquistas queriam com apreensão a emergência da burocracia a partir da “elite revolucionária” e condenavam por isso a teoria da “elite proletária” (Kropotkine, Makhaiski. [incompreensível])

Relação entre o revolucionário e as estruturas a que a revolução dá origem. Caso do socialismo, que parece ligado à burocracia e à tecnocracia. (Ver Schumpeter), razão pela qual Weber era pessimista quanto às posições de liberdade no mundo atual, cada vez mais racionalizado.

Estudar o problema no caso da revolução russa e a oposição simbólica Stalin-Trotsky – espécie de desdobramento de Lenin (burocracia versus blanquismo = revolução permanente).

Teoria das relações entre indivíduo e estrutura social. Interação. Revolução como exemplo.

2

Um problema capital: o revolucionário, na medida em que supera a fase negativa para encetar a fase positiva, tem de redefinir os seus valores e atitudes. Disso, sobreleva o problema de admitir conscientemente a iniquidade, por exemplo, sem quebra de integridade revolucionária (não apenas solucionando o problema pelo cinismo, ou a escamoteação do problema moral). A força extraordinária conferida pela determinação e a capacidade de aceitar, deglutir e superar o desvio do padrão ético e afetivo sem perder a humanidade (redefinida) e a capacidade de crer.

(Por exemplo: abandonar os amigos, ordenar a execução de inocentes etc.).

3

No mundo moderno, um traço novo: a ortodoxia, a heresia, a fé, a comunhão (ou seja, os complexos ideológicos, as sanções que definem a appartenance, a integração numa comunidade, ou a exclusão dela) se colocam em função do político (do elemento político).

Isto é o enquadramento que permite definir o novo tipo correspondente: o revolucionário em vez do santo.

4

É preciso distinguir no movimento revolucionário a motivação do agente e a realização efetiva. Um e outro poderão ser considerados revolucionários em relação ao comportamento de outros agentes (não revolucionários) e à diferença com o status quo.

Por exemplo: um país retardado, como a Rússia ou o Brasil, pode fazer uma revolução para atingir no terreno da produção a mentalidade (técnica) e a realização de um país como a Inglaterra e os Estados Unidos – onde uma e outra coisa não parecem conter nada de revolucionário.

Isto puxa uma questão importante: parece que há, acima do determinismo político, um determinismo tecnológico, ligado ao problema mais geral de reajustamento técnico na base das etapas mais avançadas. Ver, por exemplo, a americanização da Rússia: a americanização como ideal da construção socialista num país retardatário.

Assim, a ação reformista num país como os Estados Unidos ou como a Inglaterra pode levar as massas mais perto do ideal socialista de igualdade (por causa do progresso técnico) do que a ação revolucionária em países como a China, a Índia ou o Brasil, que têm forçosamente que construir as etapas intermediárias. Mas como estas são situadas teoricamente em função da meta final, são abordadas de modo muito diverso; e concebidas não à maneira liberal, mas à maneira de etapa. Daí se ver ao fato de uma revolução se desencadear com a finalidade de construir uma economia de tipo burguês; e como consequência, a repressão de liberdades e a estatização totalitária, que empolga a economia para evitar, efetivamente, a sua redução pura e simples a este tipo.

Parece, pois, que há uma divisão do mundo em áreas reformistas e revolucionárias “pela própria natureza”. O revolucionário atual é pois de tipo assaz diverso do revolucionário pré-bolchevique. Um passo além no caminho da racionalização da atitude rebelde.

5

A política moderna, como a produção, dependendo estritamente da propaganda, que é uma nova forma de imposição na escala dos milhões. Uma extensão da vontade de poderio. O revolucionário encarado como propagandista, sob este aspecto.

6

Uma nítida passagem na evolução do socialismo, no que se refere à posição, ou melhor, à atitude do socialista: da ética à ciência e da ciência à técnica.

Proudhon, Marx, Stalin.

O revolucionário se propondo inicialmente uma ação ética; a organização da luta e a organização futura do estado, como decorrências de imperativos de ordem ética.

Em seguida, atribuindo-se uma ação científica, o aspecto ético e o aspecto técnico apareceriam, no plano organizatório, como decorrências de certas verificações e posições cientificamente necessárias.

Finalmente, como o técnico, o aplicador de normas científicas e éticas já estabelecidas, ou que se estabelecem daí por diante em função da organização racional da produção, das relações sociais etc.

Três tipos humanos diferentes: o moralista (bem-mal), o cientista (leis naturais), o técnico (eficiência, organização).