Memórias de um antigo aprendiz de Carlos Zilio

Artista, curador e professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ), Bruno Miguel rememora o período em que foi assistente do artista em seu ateliê. Ele escreveu esse texto com exclusividade para o catálogo da exposição no Itaú Cultural e o titulou Para o mestre, com carinho

Prólogo
Sempre quis escrever sobre Carlos Zilio. Foram muitos anos como aluno, assistente e amigo. Por causa dessa proximidade, sempre tive certo tipo de bloqueio. Planejava, mas não executava. O medo de não estar à altura da expectativa do mestre sempre dificultava a ação. Ao ser convidado para escrever neste catálogo, revi aulas, ouvi áudios e fiz planos de falar sobre a importância do Zilio professor na formação de um circuito de arte contemporânea oriundo da academia. Tudo ia dentro do planejado até receber um telefonema dele, pedindo que meu texto fosse um tipo de relato pessoal de nossas vivências, que eu focasse nas memórias dos processos do ateliê. Segundo ele, só eu poderia ter esse olhar. Peço perdão aos que considerarem que este texto fala muito de mim, quando deveria falar somente do Zilio, mas entendam que são as honestas memórias de um outrora jovem artista, que, com toda a humildade e reverência, busca com estas palavras demonstrar a importância do exemplo, da generosidade e da subjetividade nas relações de aprendizado. Como um jovem torcedor que entrasse no Maracanã lotado de mãos dadas com o Zico, meus olhos sempre terão o brilho da admiração e da felicidade de ter estado ao lado de um ídolo.

A Escola de Belas Artes

No já distante ano de 2006, em uma manhã qualquer no prédio da reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sede da Escola de Belas Artes (EBA), eu, um aluno de roupas coloridas, piercings, alargadores, tatuagens e mais um monte de penduricalhos, entro no elevador e me deparo com o sempre discreto e introspectivo célebre professor Carlos Zilio. Com toda a minha proatividade, que, ao longo de dez anos como seu assistente, ele insistiu em chamar de ansiedade, eu me apresento e muito pretensiosamente me ofereço para, caso ele precise, ser seu assistente no seu ateliê. Alguns anos mais tarde, ele me confidenciou que naquele momento pensou: “Esse abusado tá fodido se acha que algum dia vai ser meu assistente!”.

A vida dá voltas, meu caro Carlos Zilio. A vida dá voltas.

Nossa relação já havia começado antes desse episódio do elevador, porém ele ainda não sabia. Sempre me orgulhei em dizer que, nos seis períodos de ateliê no curso de pintura, eu era o primeiro a chegar e o último a sair. Essa disciplina e o volume da minha produção chamaram atenção do professor de pintura VI, Carlos Zilio. Os alunos produziam normalmente de quatro a seis pinturas por semestre. Em pintura I, eu pintei 16 telas, e isso fez com que ele começasse a deixar conselhos escritos em pedaços de fita crepe colados em minhas telas, sempre assinando “C.Z.”. Um deles me marcou muito. “Cuidado com o excesso de sedução.” Como eu não queria abrir mão da beleza, daquele ponto em diante entendi a importância de não abrir mão da trilogia de diretrizes no desenvolvimento de uma obra: o que, por que e como pintar? A sedução poderia ser estratégia de aproximação para uma maior intimidade com o espectador, e nunca o objetivo final. Esses bilhetes se repetiram por algumas semanas, até que ele descobriu que eu estava guardando e colando suas críticas em uma tela branca para, de alguma forma, transformar em um trabalho. Uma manhã, cheguei ao ateliê e todas as fitas estavam rasgadas e amassadas no chão. Não seria daquela vez que nossa “collab” sairia.

Algum tempo depois, reuni um conjunto de novas pinturas, uma dúzia pelo menos, e montei uma “pequena individual” na parede de saída do ateliê. Algumas obras penduradas, algumas apoiadas no chão. Tive que lidar com a limitação de espaço e, ao mesmo tempo, tentar aproveitar algum tempo que ele pudesse dispender comigo após o horário da aula dele. Por duas vezes não consegui pará-lo na saída de sua aula de pintura VI. E lá vou eu desmontar tudo e botar de volta na sala de pintura I. Na terceira sexta-feira de tentativa, deu certo. Eu me apresentei, disse que era para mim que ele vinha deixando os “bilhetes” no ateliê e que adoraria bater um papo sobre meu trabalho. Perguntei se ele poderia dar uma olhada nas obras que eu tinha colocado, estrategicamente, em um espaço que ele seria obrigado a cruzar para sair do Pamplonão – nome do ateliê de pintura da UFRJ. Ele meio que fez um sim com a cabeça e fui andando a seu lado. Quando paramos em frente às obras, ele ficou em silêncio observando por uns dois minutos, até se virar para mim e elegantemente dizer “Pensa naquilo ali!”, apontando para um boneco grosseiramente pintado na parede por algum colega. Bateu no meu ombro, despediu-se e me deixou lá, atônito, sem entender exatamente o que ele queria dizer com isso. Uma dúzia de pinturas minhas e ele pede que eu pense em um rabisco escorrido na parede. Esse capítulo misterioso é um tipo de Dom Casmurro para mim. Nunca tive certeza se ele falou sério e eu não tive capacidade de captar a astúcia de seu comentário ou se ele estava simplesmente me dando algum outro tipo de lição.

O ateliê da Rua das Palmeiras

Pouco mais de um ano depois do episódio do Pamplonão, e alguns meses depois do encontro no elevador, Zilio realmente precisaria de um novo assistente. Gustavo Speridião não poderia mais ficar e me recomendou fortemente. Zilio sempre diz que foi convencido a me aceitar. Muito obrigado pela força, Speridião. O tanto de alegria pela oportunidade era proporcional à tensão de trabalhar com alguém tão importante e, principalmente, tão sério. Primeiro dia de trabalho, primeira coisa a fazer: embalar os pratos que o Zilio tinha pintado na prisão. Só isso. Devo ter dado, sem sacanagem, umas 20 voltas de plástico-bolha em torno de cada um.

Com o tempo, as coisas foram se naturalizando. O ateliê na cobertura daquele “prediozinho” simpático na Rua das Palmeiras (RJ) virou meu ponto de encontro com o Zilio duas vezes na semana, ora segundas e quartas, ora terças e quintas. Era um daqueles prédios onde o elevador vai até o último andar, mas, para chegar à cobertura, precisávamos subir mais um lance de escadas. Importante dizer que aquele estúdio havia sido, antes do Zilio, do Iberê Camargo, seu antigo professor. Essa genealogia era um tanto intimidatória para um jovem pintor como eu. Enxergava como uma responsabilidade estar próximo desse universo tão pitoresco, mas dava a esperança de que, de alguma forma, eu poderia seguir o caminho dos mestres. Ao chegar, botava minha roupa de trabalho e descobria o que deveria fazer naquele dia. Eu fazia de tudo, de compras de mercado ou materiais em lojas de tintas a buscar receitas de remédio no seu médico ou passar horas lavando dezenas de pincéis. Limpeza dos materiais e ferramentas, organização do espaço, embalagem e armazenamento das obras, cuidar dos arquivos e impressos de toda a sua carreira. Foi uma escola sobre o que é a vida do artista profissional no cotidiano do ateliê.

Em dez anos, nunca pintei para o Zilio. No máximo preparava o fundo das telas, e mesmo assim não foi algo que eu tenha feito muitas vezes. Vale dizer também que eu conto nos dedos de uma mão as vezes em que eu o vi pintar. Não me refiro a pequenos retoques, ajustes ou detalhes. Falo de pintar mesmo. Do começo, do meio e do quase fim da tela. Ele só pintava quando estava sozinho, pelo menos sem assistente. Sempre o imaginava encarnando aquele tipo de pintor clichê romântico atormentado que, de alguma forma, “dançava” em frente às telas de grandes formatos, confrontando o plano com uma agressividade sensível. Impregnando um gestual de pinceladas silenciosas, entre um gole de uísque e uma baforada no charuto, para depois sentar na sua poltrona Wassily e, não satisfeito, resolver repintar tudo algumas vezes, repetindo o ritual madrugada adentro. Quase consigo ouvir o som ecoando nos telhados de amianto do bairro de Botafogo. Aquele carrossel de cinco infindáveis discos no CD player difícil de fazer funcionar. Sempre jazz, era uma bela coleção. Ocasionalmente intercalados com João Donato ou Cartola, e que, como tudo naquele ateliê – dos móveis aos objetos –, levavam impressas as digitais de Carlos Zilio em tinta a óleo ou esmalte. Sempre nas mesmas cores, preto, branco e terra de Siena (quando em esmalte, substituída por pêssego). Mas, lembrem-se, tudo isso eu imaginava ao chegar ao ateliê e me deparar com a “cena do crime”. Repito que eu não o via pintando. Eu chegava e estava já tudo terminado. Telas prontas e ateliê todo cagado.

Como Zilio sempre foi um lorde, daqueles absurdamente gentis e que se esforçam para não invadir o espaço do outro, ele zelava pelo imóvel, que ainda pertencia à Maria, viúva do Iberê. Ele me fazia forrar tudo com plástico transparente, como um serial killer – do piso de longas tábuas corridas às prateleiras de jacarandá-escuro das estantes, típicas do mobiliário dos anos 1960, que, como ocasionalmente ele usava tinta em spray, precisavam ser protegidas da névoa negra ou branca que algum tamanduá trepidante pudesse trazer. Eu chegava e eram dezenas de pincéis de molho em faísca (solvente) para limpar, pedaços de jornal pintados que havíamos usado para mascaramento ainda com pontinhas de fita-crepe, bolos de retalhos de pano e estopa suja por todos os lados (como aquelas bolas de palha que passam rodando nos filmes de faroeste), um copo aqui e outro acolá com um dedinho esquecido de Coca-Cola Zero. Cabia-me, simplesmente, enrolar aqueles muitos metros de plástico transparente com toda a bagunça dentro e descartá-los, para muitas vezes no dia seguinte de trabalho repetir os mesmos processos.

Confesso que sinto saudade de muitas coisas desse período. O cheiro daquele ateliê é uma memória afetiva olfativa que carregarei para sempre. É uma mistura do cheiro do cedro dos chassis, com tinta a óleo da melhor qualidade e charuto cubano. Se vendessem como odorizador de ambientes, nunca faltaria na minha casa. E as tintas... Que invejinha. Além das dezenas de tubos fechados de Winsor & Newton e Van Goghs que adornavam as prateleiras (e que Zilio ele me pedia que espremesse por completo dentro de uns tupperwares grandes para facilitar na hora em que ele fosse pintar), tinha as Blocks. Eu adorava ouvir a história dessa tinta. O Iberê achava que essa era a melhor tinta do mundo e abriu uma importadora para poder trazê-la da Bélgica para o Brasil, mas era somente para uso próprio, e o Zilio, ao “herdar” seu ateliê, ficou também com centenas de tubos de tintas preta e branca. Diz ele que, ao receber a visita do Mel Bochner ou do Luciano Fabro em seu ateliê – não me lembro ao certo qual deles, pois visitas “importantes” eram rotina –, um destes perguntou se Zilio era muito rico, pois o valor de mercado daquelas tintas era literalmente uma fortuna. Olha aí a gente podendo se orgulhar do artista nacional tirando onda com artistão internacional. Eu mesmo tenho uma bisnaga de cada cor que ele me deu. Ficam guardadas no fundo do armário com chave no meu ateliê. Permanecerão como recordação desses tempos felizes.

A VIDA

Zilio me fez entender que a obra do jovem artista vai amadurecer com esforço, disciplina e paciência. E assim vai acabar chamando atenção de quem importa. Receber conselhos em fita-crepe colada na pintura é uma demonstração de afeto. Como ele posteriormente me contou, Iberê Camargo dizia que Guignard, seu professor, deixava bilhetes para seus alunos em razão de seu lábio leporino e consequente dificuldade de fala – ficava mais confortável deixando delicados recados escritos sobre as obras de seus discípulos, com bombons e pequenos presentinhos. É delicioso pensar que, consciente de minha pequena importância nesse universo, pelo menos por essas histórias, eu estive junto dos grandes artistas. Foi fundamental querer aprender e não esperar a oportunidade aparecer, mas foi mais importante saber que as coisas têm o tempo delas, e não adianta querer pular etapas. As portas vão se abrir quando estivermos preparados. Às vezes com um empurrãozinho na hora certa, como quando o Zilio sugeriu ao Paulo Venâncio Filho que desse uma olhada no meu portfólio porque, ainda estudante, eu tinha acabado de voltar com uma menção de honra da Bienal de La Paz (Bolívia). Essa oportunidade gerou o convite para a exposição Nova arte nova, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), e, a partir daí, minha carreira engrenou. Passei a acreditar que, quando o Zilio me falou, anos antes, para pensar naquele boneco pintado na parede do Pamplonão, todo esse destino já estava traçado. Não era necessário forçar nada. Era só esperar e seguir trabalhando. Zilio me fez aprender que não há escola melhor para o artista do que o ateliê.

Como escrevi nos agradecimentos do meu trabalho de conclusão de curso (TCC) de licenciatura em artes, espero um dia ser um grande professor. Espero que, como o Zilio, eu possa ajudar o meio, o sistema, o circuito das artes a ser um ambiente mais estruturado, plural e acolhedor para quem está em desenvolvimento, buscando seu lugar ao sol.

Um dia, no meu último ano como seu assistente, perguntei se ele se arrependia de ter largado as artes e se envolvido na luta armada contra a ditadura. Zilio respirou fundo, colocou seu charuto no cinzeiro, pensou por alguns instantes e respondeu: “Eu subestimei o poder da arte”.

Um artista é mais que sua obra. Alguns, além das boas histórias, são história.

[Bruno Miguel é artista, professor e curador. Nasceu em 1981 no Rio de Janeiro, cidade onde vive e trabalha. Formado em licenciatura em artes plásticas e em pintura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA-UFRJ), fez inúmeros cursos na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, inclusive participando do programa Aprofundamento em 2010. É professor da EAV desde 2011. Como artista, participa de exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior desde 2007, com mostras em países como Estados Unidos, Alemanha, Portugal, Turquia, Peru, Bolívia, Colômbia, Argentina e Chile. Suas obras integram importantes coleções institucionais e particulares, nacionais e internacionais. Ao longo dos últimos anos, foi selecionado para diversas residências artísticas internacionais. Atuou também como curador de mostras individuais e coletivas em Londres, Rio de Janeiro e São Paulo.]
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Abertura: 19h30 de 25 de março (terça-feira)
Visitação: até  6 de julho de 2025

Terça-feira a sábado, das 11h às 20h
Domingos e feriados das 11h às 19h
Pisos 1, -1 e -2

Concepção e realização: Itaú Cultural  
Curadoria: Paulo Miyada
Projeto expográfico: Fernanda Bárbara – Escritório UNA barbara e valentim

Itaú Cultural
Avenida Paulista, 149 – próximo à estação de metrô Brigadeiro

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