Estado de poesia

Não é só nos versos que se manifesta a poesia de Manoel de Barros. De acordo com o que dizem parentes, amigos e leitores que tiveram a chance de conhecer o ídolo, todo ele, ser humano de carne, osso e afeto, parecia viver numa espécie de estado poético. A capacidade de se deslumbrar com os detalhes da existência e o hábito de colecionar inutilezas e silêncios são algumas das características, delicadas e fortes, que flamejavam tanto na figura do poeta quanto nas suas criações.

foto: Marcelo Buainain

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acervo pessoal de Manoel de Barros

Poema publicado, com alterações, em O Livro das Ignorãças (1993).

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acervo pessoal de Manoel de Barros

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Manoel de Barros dizia que os anos dedicados à criação de gado na fazenda que herdou da família serviram para que ele pudesse “comprar o ócio” e se dedicar exclusivamente à poesia – tornando-se, assim, um “vagabundo profissional”.

A dualidade entre o fazendeiro de carne e osso e o poeta, ou o ser “letral”, foi explorada por Manoel em composições como “Os Dois”, de Poemas Rupestres (2004):

Eu sou dois seres.
O primeiro é fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral:
É fruto de uma natureza que pensa por imagens,
Como diria Paul Valéry.
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu
e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades
frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.

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O encontro com o ferro escondido

Foi em 1994 que o jornalista Cláudio Savaget se encontrou, pela primeira vez, com Manoel de Barros: tratava-se da realização de um episódio do programa Globo Ecologia. O poeta apresentou o seu “lugar de ser inútil”, onde, escondido o microfone direcional (já que Manoel não se dava com esse “ferro”), começou uma amizade para além da reportagem. Com a convivência, Cláudio pôde apreender a essência do encantador de palavras e pessoas: um grande leitor aplicado em desaprender, curioso pela vida e pelos outros.

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A poetografia barresca diante da parede

acervo pessoal de Luis Turiba

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por Luis Turiba

“não tem nhamonguetá nem bugerê”
(expressão utilizada por Manoel de Barros em entrevista à revista Bric-à-Brac)

Manoel de Barros agora é um musgo da mais refinada poesia universal. Mas, para quem o conheceu em ação, já foi poética pedra de água num copo de uísque escocês. Afinal, viveu embevecido pela linguagem dos ínfimos, buscando eternizar-se nas pré-coisas.

Pantaneiro de couro e coxia, emparedava-se diante do desconhecido. Foi assim no primeiro contato com os editores da revista experimental Bric-à-Brac, produzida em Brasília entre 1985 e 2002. Armou-se como um sapo na defensiva, todo casmurro. Afinal, nunca havia dado uma entrevista. Fugia da fama, do reconhecimento. E isso, como veremos, já fazia parte do seu projeto poético. Mas depois de muita negociação, que envolveu até o secretário de Cultura do Mato Grosso do Sul, deu-nos a honra de um contato pessoal, um “papo fiado” inicial. Quem sabe?

O campo da “conversa difícil” foi a sua Campo Grande. Aí, o poeta vestiu-se de citadino, calça frouxa e camisa social cheia de metáforas penduradas. Nós, as vítimas, fomos atraídos para o suculento e afrodisíaco caldo de piranha no bar de Nho Sidão, numa quebrada da cidade. Ali sobrevivia uma garrafa de scotch 17 anos, que animou nossas tratativas. Fui com o Resa, poeta das artes gráficas, nosso lendário editor visual, convidar Manoel para uma entrevista inédita à revista, além de montar as condições para realizá-la nos conformes do bom e poético jornalismo que praticávamos. Pauta dada, pauta cumprida. Resa, que era nosso melhor e maior consumidor de boas bebidas, até tentou acompanhar Manoel naqueles tragos. Mas foi em vão: chegou ao hotel abatido, cambaleando: caldo de piranha e uísque – quem há de resistir?

A entrevista para a Bric-à-Brac 3, a pioneira, nasceu assim, embebecida nesta mistura mágica: bom uísque e a saborosa iguaria pantaneira. Festejamos: Manoel finalmente topou perder sua aquática virgindade jornalística. Mas todo cuidado era pouco: há de ter muito carinho, paciência e nhe-nhe-nhem ao pé do ouvido com o poeta para não deixá-lo fugir do combinado.

O “lance de dados” nasceu da cabeça de outro poeta, Reynaldo Jardim, então secretário de Cultura de Brasília; e tudo foi abduzido imediatamente pelo núcleo editorial da Bric: Lúcia Leão, João Borges, Resa, Regina Bittencourt e este que vos escreve. Gente boa, a jornalista Thais Costa construiu a ponte Brasília-Campo Grande e, nesse primeiro encontro, nada de gravador, blocos de anotação. Fotos? Nem pensar. O poeta era clandestino mesmo, árvore invisível banhada por riachos de invencionices.

Depois de dois dias de sapos, papos, uísques e mais caldos de piranha, Barros aceitou experimentar uma entrevista. Mas tinha de ser via cartas, sem pressa, com ampla liberdade de rever originais. Assim foi dito, assim foi feito: entre agosto de 1988 e janeiro de 1989, trocamos (João Borges e eu) umas 20 cartas com o poeta, que resultaram em dez perguntas-respostas – uma entrevista histórica e reveladora, na qual o artista se desnuda e indica (com detalhes) como construiu palmo a palmo sua obra. Olhando pelo retrovisor, tudo lembra um apaixonante roteiro de Buñuel com final feliz. Na prática, arrancamos uma esmiuçada poetografia da linguagem barresca, em que seu striptease estilístico foi completo, sensual e detalhado.

Bamburramos! Alguém sempre vê antes de nós: no caso, foi o acadêmico filólogo e ex-ministro da Cultura Antônio Houaiss. Depois de ler o resultado de seis meses de cartas, antes de a revista ser impressa, ele, Houaiss, me escreveu um breve e histórico bilhete jogando luz, sol e farol sobre a entrevista. Era o que faltava, pois não tínhamos a clara noção do quão histórica e reveladora ela (a entrevista) se tornaria para a compreensão da obra de Manoel. Sem querer querendo trançou-se verdadeiramente uma parceria entre o experimentalismo dos brics da moderna arquitetura de Niemeyer e Lúcio Costa e a pantalinguagem do poeta-caramujo, temperada, naturalmente, a uísque e caldo de piranha. Disse o mestre Houaiss, enchendo-nos o peito de orgulho: “Nunca se juntou, num único diálogo, tanta informação e tanta emoção sobre o poeta – o que faz do texto da entrevista algo de agora em diante indispensável para quem queira situar-se na poesia e no universo barresco”.

É Antônio quem continua: “Creio, por todos esses motivos e muitos mais que omito, que você conseguiu um feito que todos devemos agradecer-lhe, tamanha a importância da poesia de Manoel de Barros”. Era fevereiro de 1989 e a carta de Antônio veio em papel timbrado da Academia Brasileira de Letras (ABL). Dizia ainda o mestre: “Tive a oportunidade de ler, dentre os que a tiveram em primeira mão, a entrevista que você teve aventura de entreter com Manoel de Barros. Devo confessar que você me parece triplicemente galardoado: primeiro, porque o fez falar por dentro dos horizontes da sua própria poesia dele, o que me parece algo inaugural, pois se trata, como é público e notório, dos mais casmurros encaramujados poetas do nosso grande poetar”.

Atenção para o detalhe: “o fez falar por dentro dos horizontes da sua própria poesia dele”. Há um barroquismo estilístico lindo nessa frase de Antônio. E Antônio prossegue atestando a qualidade do diálogo: “Manoel de Barros usa de uma franqueza e desassombro de quem decidiu, no instante, cortar as amarras com a discrição e fazer brotar de dentro todas as suas intuições e convicções dos seus muitos anos, muitas décadas de poeta sem-par no cenário poético nosso e diria mesmo universal, graças a um humildismo pungente, que recoloca no centro de nosso universo emocional o homem com todas as suas criaturas parelhas – um muro, um bêbado, uma flor, um verme, o nojo, a visão, a esperança, a palavra, a palavra, a palavra”.

“Não presta, não dá pra nada; há de ser poeta”, contou Manoel sobre si. Fazer uma entrevista requer uma estratégia para arrancar o que está submerso. O teste da pergunta é a resposta que ela pode provocar. Há de navegar com cuidado, matreiramente, pois são grandes os riscos de ficar com as mãos vazias no final do percurso. MB era um misterioso poeta na época, conhecido apenas em círculos restritos. Mas, já com uma vasta obra publicada, desenvolveu um traço estilístico fortíssimo de tonalidade muito pessoal – e radical –, como parte da liberdade linguística aberta no modernismo por Oswald de Andrade. Em alguns momentos, sua linguagem elaborada e refinada se avizinha da prosa-poética de Guimarães Rosa, com quem Barros conviveu. Em outros, o poema curto, o mínimo de palavras com o máximo de densidade. a concisão de um quase haikai.

Revelo agora um segredo bem contado: “Busco a linguagem nos ínfimos. Na escola, menino ainda, deram-me uns óculos e alguns livros. O dom há de um dia escapar pelas frinchas. Os desvios linguísticos, os coices na gramática, os volteios sintáticos dados por Vieira, Camões, Bernandes me interessavam. Eu queria era desaprender a escrita, aprendia apenas a rebeldia com os clássicos”, confessou Manoel. Um gosto de andar de costas, de errar como podia, de ser nas coisas.

Luis Turiba é poeta e jornalista, editor da revista Bric-à-Brac.

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Anos de estudo
e pesquisas:
Era no amanhecer
Que as formigas escolhiam seus vestidos.

“A Descoberta”, poema publicado em Matéria de Poesia (1970).

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A rotina de um homem simples

Artista visual e filha de Manoel de Barros, Martha Barros conta detalhes do dia a dia do pai, um homem simples, estudioso e que foi muito feliz. Na velhice, o poeta conheceu a glória, mas não se envaideceu – tanto que, certa vez, brincou: “Sempre vivi muito bem com a Stella [referindo-se à sua esposa]. Acho que não vou ter problema com a glória”.

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foto: autor desconhecido

Manoel e sua esposa, Stella, no Rio de Janeiro, por volta dos anos 1940.

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De tarde um homem tem esperanças.
Está sozinho, possui um banco.
De tarde um homem sorri.
Se eu me sentasse a seu lado
Saberia de seus mistérios
Ouviria até sua respiração leve.
Se eu me sentasse a seu lado
Descobriria o sinistro
Ou doce alento de vida
Que move suas pernas e braços.

Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na praça, quieto.

“Eu Não Vou Perturbar a Paz”, poema publicado em Face Imóvel (1942).

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Os conselhos que vêm com delicadeza

Felipe Barros, fisioterapeuta e neto de Manoel de Barros, recorda a sua relação com o avô, amigo e conselheiro. Ao ler cartas e bilhetes que o poeta lhe escreveu, Felipe ressalta o modo carinhoso com que o senhor-menino dava broncas. Entre as recomendações de Manoel – atos de amor, na verdade –, há “esquecer suas vaidades e prepotências” e procurar “ver as pessoas como seres humanos capazes de sofrer como nós”.

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Vão dizer que não existo propriamente dito.
Que sou um ente de sílabas.
Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.
Meu pai costumava me alertar:
Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som
das palavras
Ou é ninguém ou zoró.
Eu teria treze anos.
De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
se perdia nos longes da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir as suas
irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.

“O Poeta”, poema publicado em Ensaios Fotográficos (2000).