Como um Poema

Disse Mendes da Rocha em relação a toda arquitetura: “Quando disserem: esses projetos, essa obra, são uma maravilha, você tem que dar um passo atrás e perguntar: são, mas por que razão o arquiteto fez isso? Então você descobre coisas muito interessantes”.

Sigamos seu conselho: por que razão ele faz o que faz?

“A graça e a beleza da vida feita com concreto e tijolo. Para isso você convoca lembranças que podem vir desde a infância. É uma disposição espacial de coisas que estavam em abstrato, portanto você é quem produz a coisa. Como um poema, que se não fosse escrito, editado e publicado, simplesmente não existiria. E quando o poeta escreve, à tinta, a mão fica preta e a obra vira matéria! É coisa!”

Trecho de "Maquetes de Papel", Paulo Mendes da Rocha, p. 52

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A produtora cultural e consultora da Ocupação Paulo Mendes da Rocha Ana Helena Curti e o arquiteto Pedro Mendes da Rocha, filho do homenageado, comentam os aspectos mais marcantes do estilo de trabalho de Mendes da Rocha.

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“Qualquer projeto desencadeia transformações e possibilita novas relações [...]. Por isso é que é perigoso, porque o mau projeto também desencadeia horrores, degenerescência, má convivência...”

Trecho de "Maquetes de Papel", Paulo Mendes da Rocha, p. 51

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Narrativas da Construção

Discursos também constituem o trabalho de Mendes da Rocha. O arquiteto percorre o espaço, sente a ambientação e imagina as experiências que podem ser construídas ali. Um exemplo dessa perspectiva é o projeto de uma Praça dos Museus da Universidade de São Paulo – que acabou não realizado. O processo de criação desse desenho se guiava também por quais “momentos interessantes” o espaço permitiria ao público.

É o que Mendes da Rocha diz no livro Maquetes de Papel (também citado na abertura desta seção). Para produzir esses instantes de interesse – neste caso, a subida de elevador e a vista do topo –, o método é a imaginação: “Você vai juntando essas imagens e fazendo percursos na sua cabeça: a rua, o elevador, a entrada no volume do museu, onde tem pé-direito duplo, onde é climatizado, e vai se convencendo de que não podia ser de outro jeito. Neste momento aparecem as virtudes da solução que você está adotando”.

Assim, um modo de ler os trabalhos do arquiteto é perceber quais vivências eles procuram nos dar, quais cenários recortam, quais situações proporcionam. Convidamos você a explorar essas características ao longo das obras apresentadas nesse site.

A seguir, um outro exemplo, no projeto para o Aquário Municipal de Santos.

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Paulo Mendes da Rocha comenta um dos aspectos do seu projeto – não realizado – para o Aquário de Santos, que utiliza a incidência da luz do sol.

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Uma fala singular

O papel do discurso na obra de Paulo Mendes da Rocha

Por Lucas Girard

A grande atualidade da figura de Paulo Mendes da Rocha no panorama cultural brasileiro encontra-se e renova-se, para além de sua prolífica atividade construtora, em seu ininterrupto exercício de pensar a aventura humana no tempo. Profundamente reverente à universidade, em que ele lecionou até 1998, mas livre da rigidez acadêmica, seu pensamento é brilhante. Ilumina, a partir da posição singular da arquitetura no mar das linguagens, um vasto espectro das questões urgentes do presente.

Engenhosas, doces, incisivas, poéticas, as construções de seu pensamento são expressões de um espírito crítico porém amoroso. Sua fala – performática, envolvente, viva, irônica, difícil – é o meio primordial, em intimidade com o desenho e na presença do outro, para o esclarecimento conceitual de um projeto: uma ferramenta de inquirição, um meio de produção de sínteses, de reiteração de ideias, de edição e de difusão de novos enunciados. Como se a imaginação estivesse assim solta no ar, a fala em voz alta é uma mídia de experimentação e de geração de ideias e diálogos com seu sofisticado universo de interlocutores vivos ou mortos – uma gama ampla de autores da literatura, das artes plásticas, da ciência, da filosofia.

O trânsito fluido pelas fronteiras dos saberes caracteriza esse homem que, mesmo desfrutando do reconhecimento e das láureas mais significativas da arquitetura, não perde seu fascínio pela vida urbana, pelo convívio fraterno com os que compartilham do mesmo espaço. Segundo ele, “a cidade surge para diminuir a solidão”, e ela, como fenômeno, permeia seu imaginário.

Sustentada em tantos discursos, em centenas de fascinantes entrevistas, sua convicção no desenho e na construção da cidade como ação política fundamental ultrapassa seu envolvimento de décadas com as instituições de classe. Diz ele que seus “sonhos não são sonhos profissionais, mas sonhos de um cidadão”.

Um convite à reflexão

A amplitude temporal da sensibilidade de Mendes da Rocha nos transporta até regiões remotas da história e da cultura. Delas coleciona elementos fundantes das razões para continuarmos a expandir nossa presença monumental no universo, para aí então nos trazer de volta ao presente, com a indagação simples mas radical: “O que fazer?”.

Na trajetória única desse homem que cultiva a abertura da criança para o espanto, a arquitetura é um estado latente do pensamento. Pensamento informado pela matéria, pelo saber técnico, pela potência do lugar e, principalmente, pela emoção da memória. “A arquitetura já existe na nossa imaginação”; sendo assim, ela não pode ser inventada: manifesta-se como um desejo da coletividade, atávico, eternamente configurador de novas paisagens. “O povo com sua ação inaugura o lugar.”

A obra de Mendes da Rocha acontece em pequenas formalizações, em inserções de uma ordem espacial nova em meio à rigidez programática das construções do mercado e à miséria da urbanidade misantropa da era do automóvel. Sua arquitetura nua, carregada do desejo de uma espacialidade arquetípica – espacialidade que engendre novas invenções espaciais –, é informada por um olhar erótico, delicado, atento às sutilezas e às pequenas belezas da vida cotidiana, à pequena política da sociabilidade doméstica e ao impulso de estruturar o espaço para libertar a vida. Arquitetura é uma língua pela qual se conforma o ambiente de transmissão da mentalidade da cidade justa e livre – a máxima expressão da potência humana.

Sempre político, sempre afetivo, seu discurso é uma constante: registros de 60 anos de prática, alicerçada na infância. Suas obras são a realização de aproximações e ensaios, que condensam na matéria um entusiasmado elucubrar. A personalidade extraordinária de Paulo Mendes da Rocha é em si uma construção que provoca em seus pares a reflexão crítica sobre o ethos da arquitetura como forma de transfiguração do imaginário social para a construção do hábitat comum.

 

Referências

América, Cidade e Natureza (2012)
Encontros: Paulo Mendes da Rocha (2012)
Maquetes de Papel (2007)
Tudo É Projeto (2017)

 

Lucas Girard é arquiteto e urbanista, com graduação e mestrado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Colaborou, como estagiário no MMBB, com Paulo Mendes da Rocha nos projetos do Sesc 24 de Maio (em 2006 e 2007) e da Universidade de Cagliari (em 2007). É coordenador do grupo de estudos Cenários Urbanos Futuros, ligado à FAU/USP, e pesquisador do Centro de Estudos Sociedade e Tecnologia, da mesma universidade.