Para o Brasil e os Brasis

Lia recebe o povo Fulni-ô | foto acervo Ytallo Barreto

Compartilhe

Seção de vídeo

A cantora de ciranda

Compartilhe

Lia de Itamaracá no cinema

por Luciana Veras

“Nunca pensei que um dia fosse virar uma estrela de cinema“, disse ela certa vez, em entrevista a uma publicação semanal a circular em maio de 2003 por todo o Brasil. Àquela época, Maria Madalena Correia do Nascimento tinha 59 anos e, prestes a embarcar em uma turnê na Europa, festejava a atenção destinada não ao seu canto, à sua dança ou ao ritmo da sua ciranda, mas à sua presença fílmica, que despontava com mais intensidade. Naquele ano, Lia de Itamaracá seria objeto de um documentário concebido pela realizadora Karen Akerman; o projeto, intitulado Eu sou Lia, chegou a ser aprovado para receber recursos da Agência Nacional do Cinema (Ancine), mas não se concretizou. “Eita! É muita felicidade!”, exclamava à reportagem da edição 261 da revista Época.

E não era a primeira vez que a mulher negra alta e altiva transpunha as fronteiras da performance no palco, seu lugar de fala e encanto. Vinte anos antes, em 1983, sua voz e seu compasso haviam emprestado credibilidade para uma das sequências de Parahyba mulher macho, longa-metragem dirigido por Tizuka Yamasaki cuja personagem principal era Anayde Beiriz (Tânia Alves), professora e poetista que se envolveu com o jornalista e advogado João Dantas (Cláudio Marzo). Esse relacionamento, ligado diretamente ao início da Revolução de 1930, que instauraria Getúlio Vargas na Presidência do Brasil, é retratado no filme pela óptica da jovem transgressora, que, à margem de uma sociedade antiquada, ansiava por viver em liberdade.

“Ela não sabe o que é amor… E eu não posso viver sem ela”, entoava Lia, trajando uma bata branca, de lenço na cabeça, a comandar uma roda de ciranda na qual Anayde e João traçavam seus próximos planos, sem adivinhar o destino trágico que os acometeria. Os versos seriam proféticos: Dantas fugiria para o Recife, as cartas trocadas entre ele e Anayde seriam descobertas pelo seu rival, João Pessoa, então presidente do estado da Paraíba (atual cargo de governador), e publicadas na imprensa local, e Dantas assassinaria Pessoa em uma confeitaria no Centro do Recife.

Nos créditos dessa obra, o nome de Lia de Itamaracá aparece entre dezenas de outras pessoas reunidas no elenco de apoio. Três décadas depois, ao fim de Sangue azul, ficção realizada pelo cineasta pernambucano Lírio Ferreira, ela ressurgiria como “cirandeira”. Não há tanta distinção entre aquela cena de outrora, em que Lia e dois outros músicos dão nota e tom enquanto as pessoas se agrupam na tradicional roda de ciranda, e essa no longa de 2014, que se imiscui logo após os primeiros 15 minutos da narrativa ancorada na chegada de uma trupe circense ao arquipélago de Fernando de Noronha: a filha de Iemanjá e devota de Nossa Senhora das Graças, tradução e espelho do sincretismo nosso de cada dia, é enquadrada para providenciar a trilha sonora diegética que há de mobilizar aqueles personagens.

“Cirandeiro, cirandeiro ó, a pedra do seu anel brilha mais do que o sol”, diz Lia. A câmera de Mauro Pinheiro Jr., no entanto, aproxima-se dela de modo a salientar a força da sua expressão corporal, a luz que irradia do seu rosto quando ela canta, tal qual um farol a orientar navegantes em noites de maré turva, algo que não aconteceu em Parahyba mulher macho. Um close up do rosto ladeado por brincos grandes e uma faixa amarela com paetês para ornar os cabelos revela a intenção de Sangue azul de transformar, naqueles breves momentos, Lia de Itamaracá no ponto fulcral da sua narrativa. Todo o elenco – os protagonistas Daniel de Oliveira e Caroline Abras, que encarnam irmãos envoltos em um passado de sombra incestuosa, Matheus Nachtergaele, Rômulo Braga, Milhem Cortaz, Brenda Lígia – dança ao redor dela. É sua voz que escutamos, é para ela que olhamos. Ela é Lia.

Lia em curtas

Essa reverência se percebe, também, em quatro curtas-metragens dos quais ela é força motriz. Três deles, na seara documental, têm Lia como um dos seus eixos. Aliás, O mar de Lia, escrito e dirigido por Hanna Godoy para a série Olaria cultural, é todo centrado em sua figura emblemática. No início do documentário, vemos uma canoa a singrar os mares do litoral norte de Pernambuco, o barqueiro a conduzir na popa e na proa uma boneca gigante, símbolo do Carnaval de Olinda, talhada à imagem e semelhança da cirandeira tão idolatrada naquele território que fez de Itamaracá seu sobrenome artístico. Em seguida, corta para Lia no refúgio da sua casa, falando de si com graça e gosto enquanto pica cebola com um facão.

“Moreno dengoso, me dá um beijinho que eu te dou uma rosa e todo meu carinho”, ela cantarola para Toinho Januário, seu marido e companheiro. “Casado é aquele que bem vive. Ninguém está preso e ninguém está obrigado”, complementa Lia. Em pouco mais de dez minutos, o curta se esmera para nos dar a dimensão subjetiva de uma mulher tão vasta que tem uma boneca gigante própria e para alinhavar essa perspectiva íntima à estatura popular e coletiva que também a constitui.
“Muitos vêm pegar em mim, me apertam e perguntam: É ela mesma? Ela é de carne? O pessoal chora”, sorri
. Na cena final de O mar de Lia, exibido em 2010 na Mostra Pernambuco do Cine PE – festival do audiovisual, com um vestido de cetim azul, de costas para a câmera, mas de frente para o mar, ela evoca sua orixá.

Em Formiga come do que carrega, de Tide Gugliano, e Encantada, de Lia Leticia, ambos rodados em 2013, amplia-se a conexão entre Lia e Iemanjá. O primeiro é um registro documental de vários mestres, herdeiros e guardiões da ciranda, como Cristina Dengosa, João da Guabiraba e Mestre Geraldo. Nessa polifonia, aos ecos da sonoridade advinda do trio caixa, surdo e ganzá, a cirandeira confessa: “Quando chego na beira do mar, com minha mãe Iemanjá, tudo é com ela. Eu sou filha dela. Iemanjá, para mim, é mil maravilhas”. Mais próximo da videoarte, sem diálogos ou cantorias, Encantada nos oferece uma janela para vislumbrar Lia não como filha da mãe dos mares, mas, sim, talvez como a própria Iemanjá… Em um barco a correr as águas, ela observa o mundo, em azul e em silêncio. Não canta. Nada fala. Mas se impõe. Divindade? Orixá?

“Eu sou Lia da beira do mar, morena queimada do sal e do sol, da Ilha de Itamaracá… Minha ciranda não é minha só, ela é de todos nós… É a primeira voz”, responde Lia. Ela é múltipla – divindade, orixá, mulher, cirandeira… E sua voz, sua arte, é de todos nós. Atravessando o continuum espaço-tempo do cinema, e da vida, essas estrofes regridem alguns anos até Recife frio. Nesse curta de Kleber Mendonça Filho, de 2009, uma ficção científica, satírica e crítica, Lia chega para trazer o desfecho. Agasalhada com um casaco preto, mas sem esquecer a faixa com paetês na cabeça, ela canta na areia e, como nas outras ficções, cadencia as outras pessoas, instigando-as a remexer os pés em consonância com a levada da ciranda – o pé esquerdo à frente, nunca esqueçamos.

A volta, agora na ficção

Uma década depois, mais uma vez a convite de Kleber, Lia de Itamaracá voltou ao cinema. Pela primeira vez, sob o viés da invenção: seu pioneiro personagem ficcional, Carmelita, a matriarca de um pequeno povoado nordestino, não aparece viva em cena, mas é sua “presença fantasmagórica protetora”, nas palavras do codiretor Juliano Dornelles, o motor de Bacurau. Vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Cannes, o longa-metragem versa sobre memória, educação, luta contra opressão e violência, e senso de comunidade, companheirismo e coletividade. Eleita ícone de um povo que, sob ameaça, sobressai na resistência, Lia não fala. Nem precisa. Sua morte é o motivo do retorno de Teresa (Bárbara Colen); logo no início da narrativa, no velório de Carmelita, ela está deitada na cama, vestido branco sobre lençol branco, e assim parece abençoar a neta e todas as outras pessoas que vieram lhe saudar.

“Tanta vida pra viver / Tanta vida a se acabar / Com tanto pra se fazer / Com tanto pra se salvar.” Os versos de Réquiem para Matraga, compostos por Geraldo Vandré em 1966, foram escolhidos pelos realizadores para encerrar Bacurau. Quando o nome de Lia de Itamaracá irrompe nos créditos, já passamos por 2 horas e 15 minutos de filme e vimos que Lunga (Silvero Pereira), Pacote (Thomás Aquino), Domingas (Sônia Braga) e Plínio (Wilson Rabelo) são personagens importantes para a comunidade, ligados por muitos vínculos, e cruciais para a reação ao fascismo estrangeiro que ali aporta. E, como uma entidade, foi Carmelita, sempre, quem lembrou que, com tanto para fazer, com tanto para salvar, o certo, o justo, o generoso é olhar para e pelos seus. Ao aparecer diante de Michael, o líder dos mercenários, interpretado por Udo Kier, ela exprime, com os olhos, a urgência da sua missão. E, ao sinalizar para que o encontrem, colabora para salvar sua comunidade.

Uma matriarca, uma entidade, uma heroína da ancestralidade preta, uma cirandeira, a filha de Iemanjá, a própria orixá: eita, é muita felicidade ter no cinema ela, Lia de Itamaracá.

 

Luciana Veras é jornalista e crítica de cinema.

Compartilhe

O quadro pintado pela artista Eliane em 2017 como um presente para Lia aparece em uma das cenas iniciais de Bacurau, de Kleber Mendonça Filho. O quadro aparece na cena em que Dona Carmelita (Lia de Itamaracá) está sendo velada | quadro: acervo Centro Cultural Estrela de Lia | foto: Matheus Castro

Compartilhe

“Eu faço essas coisas, participo de programas de TV, de filme, do que me chamar, mas eu me sinto à vontade mesmo é no palco cantando.”

(Lia de Itamaracá, em depoimento para o livro “Lia de Itamaracá”,
de Marcelo Henrique Andrade)

Compartilhe

Lia de Itamaracá apoia a tradicional Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia e coloca sua arte a serviço de pautas de movimentos populares | foto acervo Ytallo Barreto

Compartilhe

“Som na Rural”: equipamento cultural sobre rodas

por Bernardo Queiroz

Como um carro pode ter sua história misturada com a cultura de um estado inteiro? Essa é uma pergunta que é fácil de responder para os que conhecem o projeto Som na Rural, liderado pelo produtor cultural, agitador e conversador Roger de Renor, figura carimbada da cena musical e artística da cidade de Recife, em Pernambuco. O Som na Rural é um projeto do coração do produtor e de sua equipe.

Olhando de fora, é um antigo Ford Rural Willys de 1969, todo decorado – mas é mais que isso. É uma iniciativa que leva cultura, música e poesia para onde vai e que é abastecida com parcerias de grandes artistas, como Lia de Itamaracá, Isaar, Orquestra Contemporânea de Olinda, Bongar, Karina Buhr, Zé Brown, Silvério Pessoa, Devotos, Alceu Valença, Mundo Livre, Lula Côrtes e as Filhas de Baracho, entre tantos outros.

Originalmente criado como um programa de TV na TV Brasil em 2008, o Som na Rural eventualmente se tornou grande demais para ser só algo televisionado. “O Rural é um projeto de itinerância cultural e intervenção urbana”, explica Roger. “A gente se denomina um veículo autoemotivo de comunicação urbana – ainda que circulemos muito pelo interior e pela Zona da Mata, continuamos sendo um veículo de comunicação urbana. A gente trabalha essas itinerâncias do carro de som, aquela rádio difusora que dá os avisos da cidade, faz campanha política e faz anúncio de missas e casamentos, festejos.” Segundo ele, essa ocupação de uso do carro como equipamento público é também palanque, coreto e assembleia.

Não é algo que funcione sozinho, mas uma coisa viva, e que depende muito de parceiros. “Chegar e acender luzes, botar uma música não faz o projeto acontecer. A gente sempre faz uma coisa em colaboração com músicos e artistas da cidade. Sempre parte da proposta deles”, pondera Roger. A ocupação dos espaços das cidades – muitas vezes considerados insalubres ou inseguros – é uma parte importante da ação cultural, quase tanto quanto as intervenções artísticas.

Funcionamento na base de amizades e permutas

A equipe é enxuta, composta de Roger, do produtor Nilton Pereira e do técnico de som, Charque. O projeto tem seu próprio ritmo, seu próprio tempo, e serve à sua própria missão. Não é um carro de som somente. “A Rural é um equipamento de cultura”, define Roger. Isso quer dizer que nem sempre gera lucro. “Às vezes a gente paga para fazer, às vezes pagam a gente.”

O início do processo é simplesmente um alinhamento entre as propostas e as pessoas interessadas para que aquele evento aconteça e seja relevante. Depois se decide o resto: se terá banda, quem se apresentará, se o som é providenciado pelo técnico Charque, se há patrocínio, se existem editais abertos ou alguma outra fonte de financiamento.

Isso quer dizer que muitas vezes o projeto acaba sendo um jogo de soma zero, financeiramente falando. Mas uma contratação com pagamento maior acaba sustentando apresentações que de outra forma não seriam viáveis. Um exemplo de parceiro que floresceu bem e ajudou a sustentar outros foi o Festival de inverno de Garanhuns. O produtor conta: “Fomos várias vezes como uma coisa alternativa do festival, e a gente terminou ganhando notoriedade. Acabou que viramos um palco quase fixo. Era um palco sem ser palco, um tablado de 20 centímetros ou meio metro, dava para as pessoas verem a banda, mas também subirem e falarem com ela depois. Esse tipo de grana permitiu que a gente respondesse a mais chamados”. É vital esse tipo de acerto para que o projeto continue, porque, sem isso, não é possível atender às demandas.

A pandemia de covid-19 afetou a iniciativa, como aconteceu com quase todos os projetos culturais do país [sobre esse tema, ouça os episódios do podcast Observe com a participação do Grupo Ninho de Teatro e do Grupo Galpão], mas, desde que os eventos de rua foram liberados, foram feitos dez eventos em um mês. “Porém, foi tudo ‘sangue azul’ [pro bono], como diz a galera do audiovisual. São nossos parceiros”, esclarece Roger.

Para ele, a Rural funciona desse modo, por meio de amizades e permutas: “A galera da grafitagem, com o movimento da juventude negra do Pina, da Brasília Teimosa [bairros de Recife], fez uma Virada Negra em Brasília Teimosa e a gente estava lá, no Centro Social Urbano do Bode – conheci um bando de banda nova, foi muito massa. É assim que a gente funciona. Faz um Sesc e faz três parceiros [de graça]. Faz um evento para a Secretaria da Cultura da Prefeitura do Recife e faz mais tantos shows gratuitos ali na rua. Uma coisa compensa a outra. E nisso tem 13 anos”.

“Lia tem a mesma vibe do Som na Rural

Alguns parceiros estão mais presentes no projeto, e Lia de Itamaracá é uma delas. “Lia já era parceira desde antes de o Som na Rural começar, na época da TV. A conexão aconteceu através do produtor e diretor Nilton Pereira, fundador da TV Viva. “Eu estava com o bar Pina de Copacabana, lá no Bairro do Recife, e muito envolvido com a história do manguebeat, nos anos 1990. E aí começamos a fazer projetos que envolviam apresentações na rua, fomos nos aproximando de Lia desde a época do [festival] Abril pro rock,” relembra. “Quando o Beto [Hess, produtor e empresário de Lia de Itamaracá] começou a produzir para ela, foi uma liga muito exata, combinou muito bem. Ele fazia essa ponte também com a gente, indicando os lugares onde ela poderia se envolver.”

Os dois sempre tiveram pensamentos parecidos. “Lia era igual a gente nisso de que não era só uma coisa de ganhar dinheiro. Lia sempre teve a mesma vibe do Som na Rural, não somente a coisa de ganhar o cachê, mas melhorar a cidade e a vida como artista. A gente trabalha também por uma necessidade de melhoria do mundo. Lia sempre fez isso, seja servindo a merenda para os meninos nas escolas, seja cantando na beira da praia ou alimentando as galinhas dela. Ela faz isso naturalmente, e assim nossa relação foi aumentando”, afirma.

Com a Rural, a parceria se intensificou, e o projeto passou a contar com Lia de uma forma muito espontânea. “Ela gosta de dar um rolê de Rural, num carro tão simbólico. E quem não gosta de estar perto de Lia? Cada momento era uma coisa surpreendente. A nossa amizade com Lia é feita de encontros – de trabalhos que não dão o menor trabalho. Sempre foi de muito prazer, de muita comida, de muita beira de praia, e as amizades são fortalecidas quando são assim”, rememora Roger.

Compartilhe