DEPOIMENTOS

Mulheres negras artistas contemporâneas revivem a musicista

A escritora e dramaturga Maria Shu tomou emprestada a voz de Chiquinha Gonzaga para construir cinco textos apresentados em audiovisual na Ocupação em homenagem à maestrina, com a interpretação de artistas negras femininas cujas histórias de vida, na atualidade, se identificam com a da musicista dos séculos XIX e XX.

Chiquinha Gonzaga foi pioneira em diversos aspectos e enfrentou todas as barreiras encontradas em seu caminho, em um Brasil em transição da Monarquia para o Império até desembocar na República, preconceituoso e cheio de regras que limitavam a atuação das mulheres. Algumas de suas lutas são contadas na Ocupação dedicada a ela de forma poética por cinco narradoras. São elas, Dona Jacira, multiartista e mãe de Emicida; Jup do Bairro, cantora, compositora e apresentadora; Beth Beli, percussionista e fundadora do bloco carnavalesco Ilú Obá De Min, a atriz Indira Nascimento e a cantora Fabiana Cozza.

Os textos escritos pela dramaturga Maria Shu, são narrados por elas como se fossem depoimentos da própria maestrina sobre sua vida. Gravados em audiovisual, eles fazem parte da exposição. Todas as mulheres envolvidas nesta ação têm a negritude em comum com Chiquinha, fato que se desdobra nos enfrentamentos de suas vidas até os dias de hoje. Abaixo, a transcrição de suas falas.

Por Dona Jacira

No interior da casa de Chiquinha Gonzaga, de dia, ela está em pé ao lado de uma cadeira. Ela tem um braço levantado para o alto. Seu punho está cerrado.  

“Esteja avisado: minha vida daria uma burleta. Meu nome é Chiquinha Gonzaga: sou compositora, maestrina, abolicionista. MULHER NEGRA. Eu resisto. (Chiquinha abaixa o braço).  

A minha história começa em 1847. Nasci num Brasil escravocrata. Filha de um jovem militar branco e uma mulher negra. Meu pai enfrentou sua família aristocrata e se casou com minha mãe, depois que eu nasci. Sou fruto de uma união “ébanomarfim”, como as teclas de um piano. (Chiquinha se aproxima um pouco da câmera). 

Quem chega ao mundo fazendo barulho, não pode viver calada. O piano é a minha voz. Havia um provérbio português na época que dizia: “uma mulher já é bastante instruída quando lê corretamente as suas orações e sabe escrever a receita da goiabada. Mais do que isso seria um perigo para o lar”. (Chiquinha bufa). Aprendi a ler, escrever, calcular, mas aprendi também a bordar, a coser, essas coisas que moldam a mulher para o silêncio. Mas eu também estudei piano. O piano me salvou. Preciso dele, como um peixe precisa de água para viver. (Chiquinha se senta, como se estivesse em um banco ao piano). 

Lembro como se fosse hoje. Era noite de Natal, 1858. Eu estava nervosa, mas feliz por ter uma plateia aos 11 anos de idade. Apresentei para a família minha primeira composição: Canção dos Pastores. O Juca, meu irmão, escreveu a letra. Como era mesmo? (Chiquinha Gonzaga fecha os olhos e toca as coxas, como se tocasse as teclas de um piano. Ouvimos um trecho desta canção sendo executada. Ela sorri).  

Fui educada para ser dama de salão, uma sinhazinha, mas eu fugia para ver os escravizados da fazenda dançando lundu e os sambas de umbigada. Eu era uma menina negra e eu sabia disso. O sangue fala, ele convoca. Os batuques tocados na fazenda eram um chamado ancestral dos meus antepassados. (Sorri). Fico arrepiada só de me lembrar do som. (Chiquinha mexe os ombros, como se dançasse lundu).  

O maestro Lobo me ensinava a música clássica europeia, como único modelo a ser aprendido. Mas a música africana...também não é música? (Chiquinha muda o tom, fica mais séria).  

A vida é um piano. As teclas brancas representam a paz e as pretas, a luta. Com o tempo, eu aprendi que pra fazer boa música, é preciso tocar as duas teclas. (Ela começa a fazer um barco de papel).

Foi meu pai quem escolheu meu marido. Casei novinha, dezesseis anos, era o costume da época. Mas eu não gostava do senhor Jacinto Ribeiro do Amaral. Eu sentia prazer quando eu tocava piano e sentia nojo, quando o senhor meu marido me tocava. (Chiquinha Gonzaga toca o ventre).

Nasceu meu filho João Gualberto. Eu sonhava com a música, mas minha realidade era o pranto. Lágrimas marcaram o meu rosto quando dei à luz à Maria do Patrocínio, meu segundo filho. Eu tocava piano e Jacinto tocava o terror na minha vida. (Chiquinha termina o barco de papel. Usa-o para narrar o trecho a seguir).  

Um dia, em 1866, o navio do Senhor Jacinto, meu marido, foi fretado pelo governo para servir de transporte para a Guerra do Paraguai. Ele me obrigou a acompanhá-lo na viagem, só pra me afastar da música. Mas eu não vivo sem música. Pra abafar a sinfonia dos canhões de guerra, consegui um violão, um instrumento considerado pelas elites símbolo da vagabundagem. Aprendi a arranhar alguns acordes com os tripulantes, homens negros que estavam ali sonhando com a sua alforria. Escravizados que os senhores mandavam para a guerra para substituir seus filhos brancos e mimados nos campos de batalha. Uma mulher preta, um violão malandro, soldados-escravizados iludidos e um punhado de sonhos nos porões do navio. Eu era tão dominada quanto eles. (Chiquinha Gonzaga amassa o barco, com fúria). 

Não dava mais. Eu não entendo a vida sem harmonia. Como conviver com um homem que tinha o meu piano como o seu rival? Como viver ao lado de um homem que detestava a minha música? Como amar alguém que me tratava com desprezo, por conta da minha origem negra? (Um longo suspiro).  

De repente, eu soube que estava grávida mais uma vez. Em 1867, no meio desta tormenta, nasceu o meu terceiro filho, Hilário do Amaral. Mas eu continuei tocando piano. (Chiquinha Gonzaga toca seu “piano” nas coxas). 

Foi aí que o senhor Jacinto me deu um ultimato: ou o piano ou ele. (Chiquinha para de tocar). Se eu tiver que escolher entre um marido e a música, eu fico com a música. Eu sempre escolherei a música, sempre. Sabe por quê? Música é liberdade.”

Por Jup do Bairro

No interior da casa de Chiquinha Gonzaga, de dia, ela segura uma porta entreaberta.  

“Meu nome é Chiquinha Gonzaga e eu cheguei até aqui não foi à toa. Me olharem com desprezo por eu ser ‘divorciada’, não vai me afastar da música. Minha família me declarar morta pra eles, não vai me afastar da música. Tirarem meus amados filhos, pra me punir, não vai me afastar da música. Venderem o meu piano não vai me afastar da música, senhoras e senhores! Sou feita de teclas pretas e brancas. Eu sou a música, eu sou meu próprio instrumento. A trilha sonora da minha vida sou eu quem faço. (Chiquinha fecha a porta. Começa a tocar Querida por todos, de Joaquim Callado). 

Meu amigo Joaquim Callado compôs essa polca pra mim. Chama-se Querida por todos. Nem todos. Tem gente que me despreza, que cochicha sobre mim nesta cidade. Isso me prejudica. Mas tem gente sim, que me ama profundamente. Eu sou querida e amada por João Batista de Carvalho, meu amor verdadeiro. Eu o escolhi e ele me escolheu. A felicidade é difícil de encontrar, mas eu a encontrei. Meu Carvalhinho toca as notas da minha alma, são músicas de paz, de harmonia. Uma sinfonia de amantes. Eu me sinto melodia inteira, dentro do compasso, como há muito tempo não sentia. O meu amado é para mim um ramalhete de mirra; mora entre os meus seios. (Chiquinha aninha um braço no outro, como se ali tivesse um bebê. Sussurra uma canção de ninar).  

Alice significa ‘de linhagem nobre’, cheia de energia, ativa, decidida. Comunicativa e criativa, como a mãe. (Chiquinha olha para o lado, depois para o outro, como se procurasse por alguém).

Nesta sociedade patriarcal, mulher foi feita apenas para procriar. O homem não se sente responsável pelos cuidados com os filhos. As mulheres cuidam dos filhos e os homens cuidam de seus negócios. Se as mulheres trabalharem fora, os homens ajudarão com os filhos? Mulher que trabalha fora é mundana, eles dizem. Respeito as mundanas, mas eu sou uma pianeira! Eu quero trabalhar. (Chiquinha Gonzaga coloca o bebê no berço imaginário). 

Até breve, minha querida Alice. Não se esqueça de mim, eu amo você. Quando eu flagrei Carvalhinho com aquela mulher, ele me disse que o caso não havia significado nada pra ele. Mas para mim, significou. Significou ser magoada de novo por um homem, deixar outro filho pelo caminho e perder minha família mais uma vez. Isso não é pouco, pra quem vem perdendo pessoas, coisas e respeito. Ele disse que o processo do meu divórcio com o Senhor Jacinto desgastou nossa relação. Mentira. Mas como diz o ditado, amigos são a família que escolhemos. Joaquim Callado e os chorões são a minha nova família, agora. Eu toco piano na noite, pra me sustentar. Que falem de mim! Eu sou quem eu sou. Eu quero compor uma música que me faça entender que valeu a pena cada gesto meu, cada passo, cada lágrima que eu derramei. Uma composição que prove para mim mesma que eu sou uma artista. (Chiquinha Gonzaga assobia a melodia de Atraente).  

Esse dia chegou. Era fevereiro de 1877, quando eu compus a polca Atraente. Em novembro do mesmo ano, a música ganhou a 15ª edição, com capa ilustrada a bico de pena. Sabe como foi? Aquelas coisas que parece que a gente não planeja, mas no fundo, planejou e se preparou a vida toda. Eu sonhei com a melodia na noite anterior. Quando eu me sentei de frente ao piano na casa do compositor Henrique Alves de Mesquita, a composição veio inteira, escorrendo pelos meus dedos, linda! As pessoas assobiavam minha música Atraente nas ruas. Assim, a melodia foi passando de boca em boca, grudando na mente delas. As partituras venderam feito água.  

Diziam as más línguas que o título da composição era lascivo. Minha família comprou várias partituras vendidas pelos meninos pretos nas ruas e rasgaram. Rasgaram o meu trabalho! Para eles, eu maculava o nome da família Neves Gonzaga. Bobagem. Dei o nome de Atraente porque essa polca arrastava instrumentos não-triviais pra dentro da música. A música atrai e não trai, como o Carvalhinho. Aquele bon vivant, mulherengo! (Chiquinha Gonzaga assobia mais uma vez, feliz, mas seu assobio vai sendo sobreposto pela Marcha Fúnebre, de sua autoria).

Meu amigo Joaquim Callado. Por que tão cedo? Tão jovem cheio de vida e de talento. Descanse em paz, meu irmão. Seu nome está gravado na história. (Chiquinha Gonzaga recebe um papel e o lê). 

Como se não bastasse a perda de meu amigo Joaquim Callado, fui condenada pelo Tribunal Eclesiástico: eu fui sentenciada por abandono do lar e adultério, veja, só. A vida é um piano. As teclas brancas representam a paz e as pretas, a luta. Eu sigo marchando com a música.”

Por Beth Beli

No interior da casa de Chiquinha Gonzaga, de dia, ela amarra um lenço no cabelo. Depois, roda em uma cadeira giratória algumas vezes, antes de começar a falar: 

“Das habilidades que eu mais aprecio no mundo, a maior é a capacidade que ele tem em dar voltas. Há dois anos, Arthur Azevedo me fez um belo convite. Pediu que eu musicasse sua opereta chamada Viagem ao Parnaso. Eu não podia ter ficado mais honrada. Escrevi algumas músicas, mostrei pra ele, ele adorou, mas um empresário propôs que eu assinasse as minhas músicas com um pseudônimo masculino. Ele não aceitava uma peça musicada por mulher.

A sociedade não tolera uma mulher ocupando um lugar de poder. A autoria é um lugar de poder. O que é ser mulher? O que cada mulher já deixou de fazer ou fez na base da luta, pelo simples fato de ser mulher? Recusei a proposta, claro. Eu sou Francisca Gonzaga. Tenho lutado contra toda a sorte de preconceitos, dos mais violentos, até os mais bobos, se é que isso existe. Deram para implicar até com esse meu lenço. Uma mulher de respeito deveria usar chapéu ao sair às ruas, dizem. E eu lá disponho de recursos pra comprar um chapéu? Tenho aluguel pra pagar, preciso me sustentar. Artista neste país não nunca foi bem remunerado. Meu dinheiro é curto. Chapéu! Minha prioridade não é a aparência. É a sobrevivência. (Chiquinha Gonzaga dá mais um giro na cadeira).  

Como eu disse, o mundo gira e as pessoas acabam dando volta umas nas outras. Hoje, eu estreei a peça Corte na Roça, com o meu nome. O meu nome no cartaz e nos reclames! Porém, antes de estrear, a polícia fez uma mudança no texto original. Considerou o maxixe que eu escrevi para o final da opereta buliçoso, assanhado demais. Mais um escândalo na minha vida. Já até me acostumei, vim para esse mundo de modo escandaloso, mesmo. O que importa é que eu sou a primeira mulher a escrever partitura para teatro no Brasil. (Chiquinha Gonzaga fecha os olhos). 

Meu sonho é sempre meu próximo desafio. Eu quero saber aonde minha música pode chegar, como ela pode tocar as pessoas. Onde houver a possibilidade de eu me expressar através da música é neste lugar em que eu quero estar. Carlos Gomes é uma referência para mim. Escrevi uma valsa pra ele, com o nome dele. Sou ousada. Também quero ser regente, como ele, reger uma orquestra, como ele. Mas do meu jeito. Não aceito que homens possam fazer certas coisas e eu, só porque nasci mulher, não. Eu quero mergulhar na alma da partitura, conduzir as notas musicais, como quem as leva para um porto seguro. Eu sei que tenho talento pra fazer isso. (Chiquinha Gonzaga faz movimentos de maestrina).  

O Teatro São Pedro estava cheio, naquela noite. As luzes do palco acostumadas com figuras masculinas pareciam querer me cegar. Eu quase ouvi uma voz sussurrando: “aqui não é o seu lugar”. Respirei fundo. Não desisto fácil. Segurei a batuta com firmeza e regi um concerto com cem violões, este instrumento considerado da vagabundagem aos olhos da elite. Eu levo para os salões a cultura da rua. Música de preto. Eu me liberto sendo quem eu sou.  

Eu liberto a música sendo quem ela é. Eles nem sabiam o feminino da palavra maestro, acredita? Apresentaram-me como “maestra”. Provavelmente, porque nunca pensaram que usariam a palavra maestrina tão cedo em suas vidas. Acostumem-se, porque depois de mim, virão outras e outras. E você, sabe qual é o feminino de papa? Procure saber.  

(Pausa e mudança de tom

Com meus pais, eu não podia mencionar nada racial em casa, mesmo sendo eu o fruto de uma união de uma mulher negra e um homem branco. Mas eu via os negros escravizados trabalhando de sol a sol nas fazendas, via negros açoitados, negros humilhados nas ruas. Como não me envolver com a dor deles? O sangue deles é o meu sangue. Todo mundo merece a liberdade, ela não pode ser um privilégio de alguns. Comecei a vender as minhas partituras de porta em porta para arrecadar fundos para a Confederação Libertadora. Dediquei-me às campanhas abolicionistas usando a minha voz, o meu piano, o meu talento para mudar o mundo que me cercava.  

São três séculos de escravidão no Brasil. Outros países já aboliram esse sistema vergonhoso...mas quando é que a liberdade cantará por aqui? Vendendo minhas partituras, ajudei a libertar vários escravizados, como o meu amigo José Flauta, músico também. Todo artista deveria usar a sua influência para construir uma sociedade mais justa.

O tempo andou e me tornei avó. Minha neta, Walkyria é a primeira pessoa da minha família a nascer num Brasil sem escravidão. Num país sem monarquia. Bem-vindo, futuro.

Meu irmão Juca me avisou que nosso pai, José Basileu, está muito doente. Todos temem o pior. Tentei visitá-lo, em vão. Fiquei na porta da casa dele vários dias, implorando um instante com o velho. Mas ele não quis me receber. Pro meu pai, eu morri quando eu me divorciei do Senhor Jacinto. Meu pai me enterrou, quando eu me tornei artista. (Chiquinha faz um sinal da cruz).  

Meu pai é a primeira pessoa da minha família a morrer num país livre da escravidão. Um país não governado pela monarquia. Depois dele, minha mãe também se foi. Mas ainda tivemos tempo para um abraço. Carlos Gomes também partiu, no ano seguinte. Meu piano ficou um pouco mais silencioso depois de vocês. (Chiquinha faz um pequeno silêncio).  

A dor, entretanto, pode ser mola propulsora pra criação. Compus, em 1895, Corta-Jaca, música para a peça Zizinha Maxixe. (Ela gira na cadeira).  

O mundo gira e essa música vai voltar pra roda. Anota aí.”

Por Indira Nascimento

No interior da casa de Chiquinha Gonzaga, de dia, ela usa máscara carnavalesca. Tira-a para falar.

“1899. Pense em um carnaval lotado. Político. Agitado. Animado. Serpentinas e confetes coloriam as ruas e as pessoas atiravam bexigas com água e farinha de trigo umas nas outras (Sorri). Nas sacadas das casas, as madames e os senhores vibravam com a folia que ecoava pela cidade. Da minha janela, eu vi quando o cordão Rosa de Ouro passou fazendo evoluções. Os integrantes negros, os cucumbis, desfilavam suas crenças em religiões de matriz africana. Era o candomblé e os orixás pedindo passagem. Desfilavam de uma forma magistral. A cadência de cada passo, o quadril, o ombro, o sorriso no rosto...  

Eu me encantei. Seria possível captar essa alegria toda e transformá-la em música? Sentei-me ao piano. Criar é experimentar. Primeiras notas, dedos dançando sobre as teclas pretas e brancas. A partitura sendo escrita com letra apressada... Sou assim, uma mulher que tem pressa. (Chiquinha Gonzaga joga um punhado de confetes para o alto canta Ó Abre Alas).  

Batizei minha criação de Ó Abre Alas, a primeira marcha carnavalesca do Brasil. A música pegou, as pessoas cantavam em todos os carnavais. (Chiquinha Gonzaga toca os lábios com ternura).

Dizem que amor de carnaval dura pouco. Eu discordo. A vida com Carvalhinho não durou o quanto eu gostaria ou pensava. Quanto tempo duraria essa relação com João Batista Fernandes Lage? Decidi não pensar, apenas viver. Durante nossa viagem, eu fiz uma descoberta surpreendente: encontrei partituras minhas sendo vendidas em Berlim sem a minha autorização! Sem crédito algum. Como é que pode? Aquilo não estava certo, alguém precisava fazer alguma coisa.  

(Pausa)  

Percebi que jamais teria sossego enquanto não resolvesse essa questão. Mas não havia ninguém, nem lugar para pedir ajuda. De volta ao Brasil, convoquei teatrólogos, jornalistas e compositores para uma reunião. Era preciso pensarmos juntos sobre o direito dos autores! (Chiquinha Gonzaga alonga os dedos).  

Nos anos seguintes, iniciei uma intensa atividade musicando peças teatrais. Em 1912, estreou no Teatro São José a burleta Forrobodó, um dos maiores sucessos do teatro popular carioca. Eu adoro essa palavra, forrobodó. Acho-a sonora, divertida. Há quem diga que forrobodó significa ‘baile popular’, saído do galego ‘forbodó’ e derivado do francês ‘faux-bourdon’. Mas eu gosto do popular. Gosto pensar que forrobodó nasceu no banto, grupo linguístico africano e que é uma transliteração de ‘forall but dogs’, ou seja, ‘para todos, menos para os cachorros’. (Ri)  

Minha música é para todo mundo, é ‘for all’, até para os cachorros caramelos, se eles quiserem. As pessoas não estavam levando muita fé neste espetáculo: texto de autoria de dois novatos, musicado por uma mulher, com esse título considerado chinfrim...  

Inicialmente, Forrobodó causou impacto negativo, mas aos poucos conquistou o público. Foi o espetáculo teatral de maior sucesso na época, chegando a 1.500 apresentações consecutivas. Até hoje, há quem faça humor para rir dos grupos minorizados. Piada para rir do pobre, do preto, da mulher, do homossexual, da pessoa com deficiência, pra rir do indígena. Eu nunca gostei disso. 

Forrobodó trouxe personagens pobres que imitavam o comportamento da elite. O Rio de Janeiro só consumia tudo o que era importado da Europa, mas eu sempre fui a favor de uma identidade própria, de uma música nossa. No palco, não estava uma cópia de personagens europeus, mas a população pobre dos subúrbios do Rio de Janeiro, com o seu modo de falar, com suas gírias, suas palavras consideradas erradas. Isso desagradou muita gente conservadora, que não queria ver o pobre e o preto como protagonistas.  

A parte triste é que, apesar de quase todos os personagens serem negros ou pardos, conforme descrito no texto, a maioria dos atores do elenco eram brancos. Na época, o acesso de pessoas negras à carreira no teatro de revista ainda era difícil, cercado de preconceitos. No século XXI não deveria ser assim. Dizem por aí que artista não trabalha. Que mentira deslavada!  

Para você ter uma ideia, cada peça que eu musico exige que eu componha mais ou menos vinte músicas. Faça as contas. Com tanta peça que já musiquei na vida, tenho quase duas mil composições por aí. Horas de trabalho, pesquisa, noites mal dormidas. Eu mereço ser devidamente paga pelo meu trabalho, afinal, minha música é tão importante quanto o texto que é apresentado! Uma vez, ouvi um homem dizer que samba é como passarinho, é de quem pegar primeiro. Comigo, não, violão! Respeite a minha autoria!”

Por Fabiana Cozza

No interior da casa de Chiquinha Gonzaga, de dia, ela brinca com um maxixe, o legume.  

“Sabe o que é isso? É um maxixe, um legume de origem africana trazido para o Brasil pelos negros escravizados. Uma planta rasteira. A palavra maxixe era usada para designar coisas de pouco valor, como a dança inspirada no lundu. Em 1897, eu compus Gaúcho, mais conhecido como Corta-Jaca. Um maxixe. Passaram a chamar o maxixe de ‘tango-brasileiro’, para não ligar a música popular brasileira às raízes africanas.  

(Pausa).  

No Brasil, parece inferior gostar de coisas simples, principalmente quando essas coisas simples trazem o estigma de serem nossas.  

(Pausa)  

Na quitanda tem legumes. No açougue carne de vaca. Na padaria tem roscas. No Catete Corta-Jaca. (Chiquinha ri). 

Vi essa quadrinha rabiscada num muro. Explico. A jovem primeira-dama Dona Nair de Teffé, de 27 anos de idade, casada com o presidente Hermes da Fonseca, um senhor na faixa dos sessenta anos (homens podem assumir relacionamentos com pessoas mais jovens; mulheres, não) ... enfim, a primeira-dama, que era apaixonada por música popular, se intrigou com um comentário do músico Catulo da Paixão Cearense que disse que nas recepções oficiais do governo só se tocava música estrangeira. Hummm... Dona Nair resolveu mudar isso e quebrou o protocolo. Ela mesma, a mulher do presidente do Brasil pegou um violão, esse instrumento ligado à vagabundagem, e executou a minha música, o Corta Jaca, um maxixe, na sede do Governo, no Catete!  

Imagina o escândalo! O Palácio lotado de representantes do corpo diplomático e da elite carioca. O senador Rui Barbosa achou um acinte. Fez um discurso inflamado e preconceituoso, dizendo que Corta Jaca era a mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens. O fato é que uma música de preto foi apresentada no Palácio presidencial. A Noite do Corta-Jaca foi uma vitória para a música popular brasileira. 

(Pausa)  

É muito curioso que façam escândalos e pilhérias com meu nome, que minha família se envergonhe por eu assinar o sobrenome Gonzaga e, ao mesmo tempo eu tenha que brigar para que o meu nome, por ser o nome de uma mulher, não seja considerado de menor valor que um nome masculino. Fundar a SBAT, a primeira sociedade no país de defesa dos direitos autorais foi uma necessidade. A sociedade que fundei recebeu homenagens e manifestações de reconhecimento do país inteiro.  

Quando compus Juriti, que estreou no dia 16 de julho de 1919 no Teatro São Pedro de Alcântara com o jovem ator Procópio Ferreira, eu me senti realizada, não pelo público superior a 2.800 pessoas, nem pelas críticas elogiosas no jornal... mas pela vitória da SBAT: minha música foi tão valorizada quanto o texto da peça. (Muda o tom. Fica mais séria). 

Mas a vida é como um piano: teclas brancas e pretas, harmonia e desafinação fazem parte do todo: perdi meu filho João Gualberto, minha filha Maria poucos anos depois. São nestes momentos, que meu piano se entristece.  

O que uma artista de 85 anos, com mais de 2000 mil canções autorais e 77 partituras para peças teatrais ainda pode querer da vida? Eu, Chiquinha Gonzaga quero é mais. Enquanto eu tiver vida e saúde, eu irei compor. Maria será a minha última partitura. (Ouve-se a canção. Chiquinha fecha os olhos para sentir a melodia). 

Toda vez que contam a minha história, terminam com a música Abre Alas, porque eu me despedi desse mundo no dia 28 de fevereiro de 1935, às vésperas do Carnaval. Mas eu sou mais que Abre Alas. Eu sou maior que um amor de carnaval. Nasci pra jogar confete e serpentina de janeiro a janeiro. A vida é como um piano. As teclas brancas representam a paz e as pretas, a luta. Pra fazer boa música, é preciso tocar as duas teclas. Pousei minhas duas mãos sobre o piano para criar música popular brasileira. Eu peço passagem.  

(Chiquinha Gonzaga assobia Atraente. Aos poucos, a canção se mistura e se funde com o assobio de Chiquinha).

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OCUPAÇÃO

Chiquinha Gonzaga

De 24/02 a 23/05 de 2021

Funcionamento: terças-feiras a sextas-feiras, em horários sob consulta para agendamento (obrigatório) das visitas, que deve ser feito pelo link sympla.com.br/agendamentoic 

Abertura da agenda: todas as segundas-feiras, a partir das 9h, seguindo por toda a semana, com o agendamento sujeito à lotação dos grupos. Caso o visitante queira ver uma segunda mostra no mesmo dia, deve verificar a possibilidade de novo agendamento. 

Permanência do público: 50 minutos em cada exposição. Trata-se de uma limitação de tempo máximo no espaço, que considera os protocolos de periodicidade de limpeza para cada ambiente.

Ingressos: gratuitos 

Informações: pelo telefone (11) 2168-1777
Atualmente, esse número funciona de segunda-feira a sexta-feira, das 10h às 18h, sábados, domingos e feriados das 11h às 16h
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