Foram me chamar

O hoje

Dona Ivone Lara, 93 anos em abril de 2015.  Partimos do hoje, da importância que essa mulher nonagenária tem para a cultura brasileira e, a partir daqui, do momento presente, vamos contar a sua história. Dona Ivone viva, cantando e encantando. Uma viagem ao passado e às nove décadas já vividas por esta sacerdotisa do criar, nascida Yvonne da Silva Lara, sem esquecer nunca a importância do agora.

Do quintal da casa onde mora com o filho Alfredo, a nora Eliana e demais familiares, em Madureira, Rio de Janeiro, às aulas de canto orfeônico com a professora Lucília Guimarães Villa-Lobos, no Internato Orsina da Fonseca, nos longínquos anos 30, Dona Ivone Lara viaja sem escalas. Adora falar sobre a época em que decorava melodias para o tio materno, Dionísio, e de quando compôs a sua primeira música, aos 12 anos: “Tiê”, feita em homenagem ao seu pássaro de estimação.

Do hoje Dona Ivone também fala. Recém-homenageada pelo projeto Sambabook, da Musickeria, a ser lançado no segundo semestre de 2015, ela não se cansa de contar o quanto fica feliz com homenagens, com a humildade que só os mais raros têm. Em 2012, foi a vez de ela estrear como samba-enredo na Marquês de Sapucaí, quando virou tema da Império Serrano, sua escola de samba do coração. No mesmo ano, o disco mais recente foi lançado: Baú da Dona Ivone, somente com músicas inéditas.

Também fomos chamar Dona Ivone,  para mais uma homenagem, com todo o amor e respeito. Seja bem-vindo a essa história!

 

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Dona Ivone Lara em foto tirada em 13 de abril de 2015, o seu aniversário de 93 anos | imagem: André Seiti/Itaú Cultural

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Curador

Tiganá Santana é músico e filósofo, formado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Começou a estudar violão clássico aos 14 anos e aos 16 já compunha em línguas africanas e europeias. Em 2015, lançou o seu terceiro disco, Tempo e Magma.

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A menina e o tempo

Dona Ivone Lara / Bruno Castro / Zé Luiz do Império 

Do meu tempo de menina
Tenho muito pra contar
Brincando e cantando com meu passarinho
No Sonho de Valsa do meu cavaquinho
Tocando chorinho pra lá e pra cá
No pique do primo levado da breca
A gente saía na rua em festa
Cantando e fazendo o povo cantar

Da infância um alento
Que não canso de lembrar
O velho tio, tão risonho
Me dando sonhos pra guardar
Hoje, agradeço a Deus
Por ter tanto pra dar
Vejo alegria na tristeza
Esperança na angústia
Luz em cada olhar
Eu agradeço essa riqueza
E devolvo com franqueza
Esse meu cantar

Tiê, Tiê, oia lá oxá…
E devolvo com franqueza esse meu cantar
Sorria mais criança, pra não sofrer…

Música gravada em Baú da Dona Ivone, 2012 

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Leitura do texto curatorial

Tiganá Santana é músico e filósofo, formado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Começou a estudar violão clássico aos 14 anos e aos 16 já compunha em línguas africanas e europeias. Em 2015, lançou o seu terceiro disco, Tempo e Magma.

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Dona Ivone “Rara” e o sacerdócio do criar

Aqui, ocupar é preencher um espaço que se destina à ondulação. Onda de som uterino tornado música; onda de rio que floresce o dourado da deusa das fontes – cor dileta; onda ou a ação de bordar a saia da ala, os babados do mar; onda que, de tantas dobragens, circularia a terra precedente e formaria uma roda… Bola de ancestrais… Espiral de presenças, isto é, um terreiro, que é terra movida, revolvida, molhada por suor, pranto e profundeza. De onda a onda, entesa-se um fio – corda de cavaco, bordão, fio de criação. Dona “Rara” cose fios, conhece-lhes a âncora porque sabe que é enigma; criar é enigma; vociferar é enigma; passar o tempo da roda, do ritmo, da melodia paulatina e completada é enigma.

Dona “Rara”, seguindo, lidou com terra ondulada pela morte, circulada pelo encontro – argumento forte do espírito –, brocada pelo sacerdócio que herdou como um comentário dos astros, porque as frequências que lhe percorrem as artérias sonoras sobem e descem, serranas, perto dos movimentos do Sol – e é no Sol que o dourado volta. O samba é uma volta em torno do Sol e Dona “Rara”, sacerdotisa, fez mais de 90 raios, poucas linhas na carne e tantas outras em tantas outras cordas de coração. Parece que o seu ocupar é inventar o próprio espaço com fios curvilíneos de Sol que cantam sempre um lindo alvorecer, apesar do banzo, apesar de ser tão difícil viver…

A rara Dona Ivone Lara de abril, em seu outono, coroa sobre o ori, mesmo quando ainda era verão, ouve e manifesta, com o Axé de Ianga, a música dos fatos e das coisas: reverberou os mais velhos e o jongo; solfejou a loucura com a parceira Nise, a poesia, o mote entre amigos, de Delcios a Brunos; “lararariou” a força íntima coletiva e os sonhos meus.

Dancemos as suas ressonâncias, pois criar, além de enigma, é dançar por entre as possibilidades, ocupando-as, ondulando-as. No ondulado mar de acreditar, como é bonito, meu Deus, o canto dessa sereia.

Tiganá Santana é músico e curador da Ocupação Dona Ivone Lara