Brasil de Amanhã

Passarela

Imagem: André Seiti

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No texto “Arquitetura e Cultura Nacionais” (1959), publicado em Caminhos da Arquitetura, Artigas endereça aos mais jovens este pedido: “Estudai com ardor. Sede complacentes com algumas deficiências nossas, ajudando a construir, de qualquer ponto de partida, com seriedade e responsabilidade, o Brasil de amanhã. Tenho a certeza de que caminharemos juntos”.

Estamos naquele “Brasil de amanhã” de que ele falava — agora, Brasil de hoje. Como sua obra e seu legado dialogam conosco? 

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Passarela

Imagem: André Seiti

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Garagem de Barcos

Imagem: André Seiti

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Joca Reiners Terron: Passarelas Sem Futuro, Cidade Sem Passado

Somente a glória dos faraós e a proteção dos ETs que os iluminaram, como afirma a lenda, explicam a preservação das pirâmides de Gizé, no Cairo. Com cerca de 4 mil anos, continuam de pé, ao contrário de marcos do século XX que, em meio ao descuido, desabam na metrópole egípcia. Vontade política e consciência pública são fundamentais para a manutenção de importantes obras arquitetônicas. Mas, quando a amnésia cultural se impõe, tais aspectos simplesmente não chegam a existir, pois decorrem da memória, isto é, do conhecimento e da valorização do passado. Tal condição parece impossível para a concepção brasileira de Estado, demasiado personalista e inconsciente para a coisa pública.

Exemplos mais próximos de nós em escala e topografia são as passarelas projetadas por João Batista Vilanova Artigas em São Paulo. Passamos por elas sem saber como nasceram, ou quem foi seu pai. Delas não guardamos lembrança, a não ser quando as ultrapassamos a pé ou de automóvel. Nossas pegadas as reconhecem sem que a cabeça seja informada de sua relevância, pois, mesmo tombadas pelo Patrimônio Histórico, não há placas que cumpram esse papel. Sabemos o ponto exato no tempo e no espaço em que se iniciam, mas não onde acabam. Talvez não tenham futuro. 

Passarelas do caos

Foram seis passarelas projetadas pelo arquiteto na capital paulista. Em diversas ocasiões, atravessei duas delas sem ter qualquer noção de quem era o seu autor. Atrasado, prestes a perder o voo, não percebi a ferrugem que corrói as 150 toneladas de aço da que se encontra na Avenida Washington Luís, em frente ao aeroporto de Congonhas. Sem dúvida, é a mais acidentada de todas. Desprezada não apenas pelos pedestres, que em sua pressa mal a veem, já veio abaixo duas vezes entre 1974, quando foi instalada, e 2015, atingida em ambas as situações por caminhões que também não a viram. No período de sua existência, as únicas manutenções pelas quais passou se deram após esses acidentes de trânsito, ao ser reinstalada. Agora, a atual administração planeja substituí-la, sem informar se o projeto original de Artigas será adotado como diretriz.

Vivi quase uma década em Perdizes. Premido por urgência diversa, atravessei muitas vezes a passarela do Largo Padre Péricles: tinha fome, e ia ao Ponto Chic que fica diante da igreja de São Geraldo. Sempre de barriga vazia, sentia vertigem ao percorrer o giro helicoidal que liga a passarela à calçada. Depois de aliviar a larica, entretanto, podia apreciar a elegância de suas curvas, observando o tráfego quase imóvel da Avenida Francisco Matarazzo e a cauda (ou a cabeça, vai saber) do Minhocão exalando fumaça. Comparada a tão horrenda estrutura, a passarela de Artigas, com sua geometria indescritível, apequena-se: é uma joia oculta na paisagem cinzenta, breve instante de lucidez em pleno caos.

De modo semelhante, as passarelas da Avenida 9 de Julho se erguem com aparência exausta acima dos automóveis e dos pedestres. Atravesso para cá e para lá a que fica em frente à Fundação Getulio Vargas. Os alvos jalecos dos enfermeiros de folga do Hospital 9 de Julho enfrentam com destemor a fuligem do início da tarde. É horário de almoço, a chuva deu uma trégua e a senhora que habita sob a escada cria coragem para sair do caixote em que dorme e pedir esmola aos motoristas passantes. Com olhares distraídos, entre uma e outra mensagem via WhatsApp, eles não retribuem os pedidos que a mulher faz com voz estridente, acompanhados de um sinal de coraçãozinho feito com polegares e indicadores. Alheia ao reconforto estético sugerido pela beleza arquitetônica do local onde vive, a moradora de rua implora: “Estou morta de fome”. No topo da passarela, piso em algumas placas de aço corrugado que empenaram, tornando-se trampolins para suicídios involuntários: se pisadas com ímpeto, bem poderiam lançar um desavisado lá embaixo contra o para-brisa de um ônibus em movimento.

Algumas centenas de metros adiante, na mesma avenida em direção ao centro, a Passarela Doutor Nemr Jorge parece unir com pesar os vidros foscos do prédio do INSS a um mercadinho chinês quase vazio. Na caixa registradora, sem fregueses a atender, o moleque oriental joga no celular. Os mantimentos nas prateleiras são basicamente garrafões azuis de água e pacotes de salgadinhos chips. Na paisagem em permanente ruína do centro da cidade, com seus prédios abandonados, sua gente deixada para trás, um agradável odor de amaciante de roupas chama a atenção. Vem da lavanderia no subsolo do Edifício dos Estados nº 624, onde mãos dobram e desdobram tecidos na penumbra: apesar do degradante panorama urbano, não há cheiro que recorde mais a civilização. Espantado pelo porteiro, retorno à passarela. Ao admirar a economia de meios do concreto ascendente, o que fornece à passarela traços femininos, esguios, percebo que a chuva deixou um lago sobre o caminho. Impedida pela água de atravessá-lo, uma moça carrega no colo seu cão-salsicha pelas margens, arriscando-se a uma queda. Com desconfiança igual à do porteiro, o cão me olha de soslaio.

Infiltração nas cores

Do centro, uma visita ao Ginásio de Guarulhos, ou EEPSG Conselheiro Crispiniano, projeto de Artigas & Cascaldi inaugurado em 1962. O prédio passou por reforma entre 2013 e 2014, exceto pelo imenso mural pintado a óleo que encabeça o pátio central, em avançado estado de deterioração devido a infiltrações. Segundo Marcos Venite, agente de organização escolar e funcionário mais antigo do colégio, o orçamento de 160 mil reais para restauro não foi aprovado. Na imagem, crianças negras brincam de pega-pega, ameaçadas pelas manchas cada dia mais escuras que sobem da base,  arrancando a tinta e se ramificando entre cores vívidas que, em uma hora ou outra, se dissiparão no vazio. A reforma inepta substituiu o piso original de cacos vermelhos – típicos de obras de Artigas, que os recuperou da tradição popular – por cimento. No entanto, o mais grave ocorreu há dez anos, de acordo com Venite, ao construírem um prédio adicional: “Foi quando destruíram a ‘Fazendinha’ – uma ala de classes de aula feitas de madeira nos fundos da escola e ladeadas por seringueiras – para construir um estacionamento. Era a área mais bonita da escola, na minha opinião”. As seringueiras continuam lá, mas agora, em vez de fazerem sombra para crianças, protegem automóveis.

Contra intempéries administrativas, da sala dos professores às classes de alunos, do espelho d’água ao vibrante jardim, a Conselheiro Crispiniano permanece com vida: para aferir isso, basta consultar a página da escola na internet, repleta das declarações de saudades dos ex-estudantes de várias gerações.

Em contraste de outro tom, mais existencialista e adequado a alunos de ensino superior, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), também projetada por Artigas, parece reluzir. Recém-reformada e abrigando uma exposição de formas arquitetônicas construídas em papelão em seu vão principal, na manhã chuvosa em que a visitei encontrei estudantes preguiçosas que se estiravam nas redes em frente ao Centro Acadêmico. Perto da livraria, a sombra de um barbudo se espichou na parede enquanto o dono da sombra jogava solitariamente na mesa de sinuca. Dois garotos apertavam um baseado na lanchonete, enquanto o próprio Artigas, imóvel em um cartaz comemorativo de seu centenário, pareceu bocejar em preto e branco em protesto aos pichos e grafites nas paredes que dizem “Não ao museu”. 

Rumo à represa de Guarapiranga, muito distante do perfume das lavanderias, as marcas civilizatórias da arquitetura modernista do centro de São Paulo vão sendo substituídas rapidamente pela feiura dos galpões abandonados e das borracharias enegrecidas, dos barcos fantasmas e das fábricas fechadas. Não estou entre aqueles totalmente imunes à beleza espectral da periferia, e a partir de certo ponto a cidade vai se conformando no grande hieróglifo sem solução que é, até o táxi me largar na Avenida Robert Kennedy, em frente à garagem de barcos que Artigas projetou para o antigo Iate Clube Santa Paula. Pingos voltam a cair. A água poluída da represa tem a cor da fumaça, e é possível ver favelas que se agigantam na margem oposta. A laje de concreto coberta de pichos (“GRIf/NOIA/EU GOSTO DE B****A!”) é a triste comprovação de que os ETs não zelam por nossas construções assim como o fazem pelas pirâmides faraônicas. Tenho o número do celular do suposto caseiro. Toca, toca, mas não atende. Através da cerca e das correntes, vejo alguém fumando, alguém que logo desaparece em meio à bruma e ao esquecimento.

Joca Reiners Terron é escritor, editor e designer gráfico, autor de A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves (Companhia das Letras, 2013). Cumpriu quatro anos de arquitetura e urbanismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e se arrepende de ter abandonado o curso.

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A cineasta Laura Artigas, em ensaio com as roupas do avô | imagem: André Seiti

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Laura: "O Artigas não era muito alto (tinha menos de 1,70) e ninguém da família serve nas roupas dele. Meu avô tinha muito bom gosto pra roupas, suas peças são clássicas e de ótima qualidade. Sempre curti moda e principalmente roupas vintage e de brechó, e tenho o costume de assaltar o guarda-roupa alheio". | Imagem: André Seiti

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Laura Artigas: Um amor “sem concessões ao barroco”

A cineasta Laura Artigas fala da sua relação com o avô e de como foi se (re)apropriar da sua história para produzir um documentário sobre ele.

O professor de roteiro advertia que adaptar uma história real para a ficção pode ser uma tarefa árdua. Um roteiro precisa de uma estrutura, de certa lógica, mas os fatos da vida nem sempre fazem sentido.

Em 2009 me deparei com a vida de Vilanova Artigas acumulada em caixas e pastas em um quarto na casa de meus pais. Desenhos e mais desenhos. Artigas foi um arquiteto do “breve século XX”, segundo o conceito do historiador inglês Eric Hobsbawm. Ele nasceu durante a Primeira Guerra e morreu antes da queda do Muro de Berlim. Era comunista. E pôde viver a Guerra Fria que pautou o período in loco. Morou nos Estados Unidos, fez o próprio on the road nos anos 1940, antes de Jack Kerouac, e passou alguns meses na União Soviética mais tarde, em 1953.

As palavras de Artigas seduziram alguns e incomodaram outros, como o governo militar. Vovô tinha uma verve potente, mas dizia as coisas mais belas quando desenhava. Seu traço era livre e preciso, e o enfrentamento do papel em branco foi seu desafio favorito no mundo, ponto de convergência entre a razão e a emoção. Lugar onde seus sonhos ganhavam forma. E ele tinha muitos. Dedicou a vida a colocá-los em prática.

Os rascunhos dos artistas sempre me pareceram mais interessantes do que a obra final. Promovem aquela adorável subversão de espiar a intimidade alheia. Conviver com os desenhos de Artigas foi o primeiro passo para tentar retomar nossa convivência de quatro anos.

Minhas memórias a seu respeito foram construídas graças às muitas e muitas histórias contadas por minha avó, meus pais e alguns amigos dele com quem convivi desde pequena. Uma sequência de fotos feita no inverno de 1983 – na casa do Campo Belo, a segunda residência do arquiteto, projeto de 1949 – me ajudou a dirigir as cenas. Nela, visto um conjuntinho de moletom vermelho e seguro uma amostra de carpete verde (nos anos 1980, os apartamentos da classe média costumavam ter piso de carpete). As amostras de material de construção que ele recebia aos baldes eram brinquedos divertidos. A da foto decorou a sala da Barbie por um tempo.

Ser “neta do Artigas” é nascer com uma bagagem cultural privilegiada, é acostumar-se a viver em locais bem projetados e sentir-se muito triste sem luz natural. Contudo, também é nascer coadjuvante. Por isso, durante muito tempo a pergunta “Você nunca pensou em ser arquiteta?” soou como uma ofensa. Costumava me referir ao papo sobre arquitetura como “arquitetês”.

Aprendi o básico da língua por osmose, ainda que não domine sua gramática. E essa ficha caiu em um momento bastante trivial. Uma colega de trabalho organizava seu casamento e reformava seu apartamento simultaneamente. Comparava o valor da decoração de flores do salão de festas com o preço cobrado pelos arquitetos para fazer o projeto executivo da obra. Optou por pagar o primeiro e dispensou o segundo, preferindo dar um “jeitinho”. As flores ficaram lindas e a obra custou três vezes o planejado. Assim, compreendi que a profissão de meu avô era vista como um luxo, e não como uma necessidade, pelos não alfabetizados em “arquitetês”.

Comprar um projeto de arquitetura é comprar um plano. Um sonho. É subjetivo. E os brasileiros nunca foram muito bons em planos e investimentos de longo prazo. Artigas entendeu esse calcanhar de Aquiles nacional desde cedo. Ele amava o Brasil e criou efetivamente, desenhando em muitos papéis, o projeto para um país melhor. Começou a colocar o plano em prática quando fundou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), em 1948, e depois liderou a reforma de ensino da instituição em 1962. A solução era bastante objetiva: formar profissionais humanistas, instruídos para construir efetivamente uma sociedade mais justa.

Artigas argumentava que um aluno de primeiro ano não poderia ser tratado realmente como um ser “sem luz”, tal qual sua etimologia (do latim alumnié, “sem luz”), pois ele já acumulava experiências de viver em casas e em cidades. O teto da FAU é totalmente transparente para iluminar as mentes e as pranchetas dos estúdios de projetos.

Nos desenhos das casas de Artigas as salas são amplas, os quartos pequenos e os banheiros poucos. Artimanhas que obrigam a interação familiar. A convivência era outra bandeira dele, porque só ela explicita personalidades e promove e supera os conflitos absolutamente humanos.

A curiosidade sobre meu avô foi nutrida pela faculdade de jornalismo e instrumentalizada na especialização em roteiro de cinema. Tinha, portanto, uma história com uma curva dramática potente, protagonista com conflitos internos e externos bem definidos e dois pontos de virada no cômodo ao lado na casa da família.

Minha busca maior no filme foi tentar sentir como era estar com ele. Assim, em Vilanova Artigas – o Arquiteto e a Luz, os entrevistados emprestaram suas sensações. Tanto na convivência pessoal como nas conclusões viscerais sobre o que é vivenciar uma obra de Artigas.

“Sem nenhuma concessão ao barroco”, disse Artigas sobre o projeto da FAU em 1973. Nessa jornada comecei a compreender meu avô. Essa frase talvez resuma sua personalidade, seu estilo de projetar e sua atitude em relação ao mundo. Ele buscava a simplicidade, a essência e o necessário, a razão, o amor – pelas pessoas e pelo fazer. Artigas amou muito. Qualquer semelhança com a ficção será mera coincidência.

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Laura: "Nas fotos uso um blazer de veludo da grife Ted Lapidus. O forro estava bem detonado e troquei por um de animal print. Tem um cardigan italiano marrom de lã, que tá bem velhinho, mas uso pra ficar em casa ou com uma roupa de tecido mais fino pra dar um contraste hi-low, como se diz no mundo da moda". | Imagem: André Seiti

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Laura: "A peça que mais uso atualmente é uma camisa de smoking. Fica legal com uma calça mais casual, como um jeans e uma legging. Se ele estivesse vivo, ia pedir pra ele desenhar alguns modelitos pra mim". | Imagem: André Seiti

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Ginásio de Guarulhos

Imagem: André Seiti