O pensamento afro-latino-americano tem uma grande dívida com a pensadora e ativista brasileira Sueli Carneiro. Ao longo de quase cinco décadas de escrita acadêmica e jornalística, ela educou o mundo acadêmico e o público em geral sobre questões feministas e raciais, contribuindo, como poucas pessoas, para desconstruir a ocidentalidade do pensamento latino-americano. Seu trabalho revelou a miragem de um mundo cunhado por um universalismo abstrato e uma organização social hierárquica e binária de gênero e raça assentada na violência sexual colonial.
Sueli Carneiro foi uma das primeiras a argumentar que, se o feminismo queria emancipar todas as mulheres, incluindo a experiência das mulheres negras, deveria enfrentar todas as formas de opressão, não apenas aquelas baseadas no gênero, como um eixo de opressão separado da raça e da classe. Aprendemos com suas reflexões que, em sociedades simultaneamente multirraciais, multiculturais e racistas, como é o caso das sociedades latino-americanas, o racismo determina suas hierarquias de gênero. Hoje, parece-nos evidente que tanto a raça quanto a classe devem fazer parte dos estudos de gênero e das lutas feministas. No entanto, há 40 anos, esse reconhecimento não existia e a conquista dessa consciência no Brasil, no restante da América Latina e no campo dos estudos latino-americanos foi o resultado de estudos, como os iniciados por Sueli Carneiro, e de longas lutas, como a sua.
A pensadora atua politicamente desde a década de 1990, com o objetivo de desenvolver uma perspectiva internacionalista para as lutas do movimento de mulheres negras e de fortalecer sua participação nos fóruns internacionais em que são definidas as políticas públicas para o mundo e a "inserção dos povos do terceiro mundo no terceiro milênio”. Um dos marcos históricos dessa luta foi a criação do Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. A partir de abordagens como as suas, as mulheres negras latino-americanas puderam afirmar essa nova identidade política e essa nova subjetividade, que resultam da apropriação da condição particular de serem simultaneamente mulheres e negras. Da mesma forma, enriqueceram e potencializaram a cena e a agenda políticas com bandeiras de luta que articulam reivindicações historicamente formuladas separadamente pelos movimentos negros e de mulheres. Em suas palavras, “promoveram a feminização do movimento negro e o enegrecimento do movimento feminista”.
Outra das grandes contribuições de Sueli Carneiro para o pensamento afro-latino-americano vem de sua proposta de utilizar o termo “afrodescendente” como uma palavra com forte conotação reivindicativa, social, cultural e política, capaz de gerar coesão e identidade política comum. Essa proposta, apresentada inicialmente em 1996 na Oficina sobre etnicidade e identidade, realizada no IV congresso afro-brasileiro de ciências sociais, foi reconhecida na Conferência regional das Américas, realizada em Santiago do Chile em 2000, e definitivamente incorporada na III conferência mundial contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, realizada em Durban, na África do Sul, em 2001.
Lida por ativistas e acadêmicos, sua obra dialoga não apenas com as ciências sociais, mas com o direito brasileiro e regional, configurando o racismo como uma violação dos direitos humanos. Esse entendimento se disseminou em nível institucional na Conferência de Durban de 2001, na qual os Estados foram chamados a adotar políticas para eliminar a desigualdade racial e de gênero, a fim de cumprir os objetivos de suas políticas universalistas.
De 28 de agosto a 31 de outubro de 2021
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